
No Fliparacatu, escritoras discutem corpo, linguagem e ancestralidade em diálogo com resistência e desumanização
A 3ª edição do Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu tem como tema central “Literatura, Encruzilhada e a Desumanização”. A última mesa de hoje (28), com a anfitriã Andressa Marques, com o tema “Corpo-território” trouxe o conceito de encruzilhada para o centro da conversa, em um rico debate que reuniu Eliane Marques, Amara Moira e Calila das Mercês. Quem abriu a conversa foi Eliane Marques, romancista, poeta e tradutora gaúcha (vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2023 pelo romance Louças de família).
Na voz de Eliane, a ideia de “encruzilhada” ganhou um sentido afro-religioso e filosófico: Eliane citou referências da tradição Bantu e Yorubá para lembrar que a encruzilhada, muito além da cruz cristã, representa um ponto de encontro aberto ao novo e à mudança. E convidou as autoras a articular cada palavra do tema a partir de suas vivências.
Eliane também trouxe a provocação da “desumanização”, palavra-chave do Fliparacatdu, este ano. Ela mencionou o pensamento de uma professora (Denise Moreira) que afirma que corpos como os das autoras da mesa (pessoas trans, pessoas negras) “não são considerados humanos” dentro da lógica social excludente. Essa constatação dura serviu como ponto de partida para pensar como reverter o processo de desumanização por meio da literatura e da ocupação de espaços.
Nesse processo de ocupação e protagonismo, Amara Moira compartilhou sua experiência como travesti e escritora, discutindo como a linguagem pajubá (o dialeto criado por travestis e pessoas LGBTQIA+ como forma de resistência e comunicação secreta) é parte essencial de seu corpo-território literário. Amara Moira, autora paulista conhecida pelo livro E se eu fosse puta e pelo recém-lançado romance Neca, celebrou os encontros proporcionados pelo festival. Em seguida, mergulhou no tema central: “Fiquei martelando na cabeça como juntar essas palavras ‘corpo’ e ‘território’”, comentou.
Ela lembrou que seu primeiro livro nasceu de uma urgência militante: E se eu fosse puta surgiu de experiências como trabalhadora sexual em Campinas e dos primeiros passos de sua transição de gênero. “Eu queria uma obra radicalmente militante, mas com uma linguagem livre de discurso discriminatório”, explicou. A intenção era descrever corpos (o dela e os dos clientes) de forma ética, sem cair em estereótipos ou preconceitos, “inventando um novo jeito de fazer literatura” capaz de convidar o olhar do leitor sem reforçar o estigma
Já em Neca, ela optou por tirar o “filtro” militante e mergulhar de cabeça na linguagem das ruas. Ela explicou que neca significa pênis nesse dialeto e, não por acaso, o livro explora a obsessão da sociedade pelo corpo das travestis, especialmente suas genitálias, ao mesmo tempo em que revela as contradições dessa fixação. “Há 10 anos, uma travesti podia até ‘perder seu status’ se ela se relacionasse como uma pessoa com vagina. Veja como essa obsessão molda até nossas regras internas”, observou a escritora durante a mesa, ressaltando que travestis muitas vezes reproduzem a lógica de objetificação que as vitimiza, mapeando e categorizando as “necas alheias” dentro da própria comunidade.
Em relação ao processo de construção do livro, Amara contou que, em vez de incluir um glossário no livro, preferiu que o leitor se jogasse na experiência de não entender tudo e, ainda assim, usufruísse do texto. Essa estranheza faz parte do jogo e espelha a sensação de entrar em um território alheio, com suas gírias e segredos, e encontrar ali uma nova forma de prazer estético. “É uma linguagem que travestis foram criando como forma de proteção e que depois vai se tornando um elemento da nossa identidade”, destacou a autora.
Amara lembrou que essa “língua das ruas” foi e continua sendo fundamental para a sobrevivência e a união da comunidade. Na mesa, isso ficou evidente: quando ela leu, em voz performática, um trecho picante de Neca cheio de expressões como “nenar na neca” e “checão babado”, a plateia caiu na gargalhada e vibrou com a energia da narrativa.
No chamado à reflexão entre corpo e território, Calila das Mercês, poeta, jornalista e pesquisadora, Calila é doutora em Literatura, colocou o sotaque baiano no jogo e trouxe a ancestralidade negra para o centro da encruzilhada. Ela trouxe uma perspectiva enraizada na terra, na memória ancestral e a sabedoria das plantas, inspiração para o seu livro de contos Planta Oração, como guia do debate.
Para ela, discutir corpo-território passa por dizer de onde “brotamos”. Por isso, começou situando seu lugar de fala: a pequena cidade de Conceição do Jacuípe (apelidada Berimbau) lugar que ela nasceu, e toda uma tradição de saberes populares transmitidos principalmente pelas mulheres de sua família. “Nessa proposta de falar de corpo-território, é bom falar de onde a gente brota”, afirmou.
Calila relacionou corpo e território em uma analogia aos sonhos, pesadelos e deslealdades que habitam nossa existência. Ela achou significativo o fato da Fliparacatu trazer a palavra “desumanização” – conceito que expressa a necessidade de resgatar a plenitude da humanidade negada a tantos corpos. Em seu livro de contos Planta Oração, a autora experimentou exatamente isso: “desumanizar o humano” para (re)enxergar nossa relação com o mundo natural.
Para ela, “nem tudo se revela de imediato, literatura também é semente”. Assim como uma semente lançada na terra precisa se mover e germinar: “Quando a gente joga uma semente na terra não é para ela ficar estagnada, é para que brote alguma coisa e saia do lugar”. Em sua fala, Calila costurou referências da cultura afro-brasileira e se orgulhous de ter tomado umas “cachaças com Negro Bispo” e citou o mestre: “Quem não sabe passar pela encruzilhada não sabe escolher caminho”. Ela também citou a sábia Mãe Estela de Oxóssi, sacerdotisa do candomblé, lembrando seu ensinamento de que “o que a gente não escreve, o vento leva”.
Ao fim de sua participação, deixou uma reflexão conectada à temática do Festival: “Estamos vivendo urgências. É hora de fazer o movimento Sankofa – termo Adinkra que significa ‘voltar e buscar’ na ancestralidade aquilo que nos fortalece”.
Calila enfatizou que a natureza está nos falando para aquietar, para ouvir suas mensagens. Nessa perspectiva, o corpo (humano) só se reconcilia com seu território (terra, comunidade) ao se reconhecer como parte da natureza, não acima dela. Desumanizar o humano, paradoxalmente, seria reencontrar a humanidade em diálogo com as outras formas de vida.
No encerramento da mesa, Eliane Marques retomou a palavra para conectar os fios das falas de Amara e Calila. Encantada com as apresentações das colegas, ela confessou: “‘Neca’ e ‘Planta Oração’ são maravilhosos. Dá vontade de mastigar essas obras!”. A metáfora usada por Eliane traduz bem o sentimento que rodeava o teatro Afonso Arinos e destacou que Amara e Calila estão “transbordando novas formas de vida” por meio de suas linguagens inventivas, enriquecendo o que Eliane chama de “língua pretuguersa” – neologismo carinhoso que celebra a mestiçagem do português com as contribuições culturais negras (seja o pajubá travesti, sejam as oralidades afro-baianas). Em outras palavras, as autoras demonstraram que a língua é um território vivo, moldado pela experiência do corpo e da ancestralidade.