
Por Letícia Finamore
Na manhã do dia 28 de agosto, segundo dia do 3.º Fliparacatu, os visitantes do Festival lotaram o espaço da Academia de Letras do Noroeste Mineiro, onde são realizadas as atividades da Programação Regional do Evento. O escritor e pesquisador Anderson Valfré foi quem deu o pontapé inicial e conduziu a mesa “A relação entre a memória pessoal e a construção da história na escrita”. Em sua fala, instigou os presentes com questionamentos sobre como a escrita, a memória e a história se entrelaçam e, assim, destacam as tensões entre o que vem de fora e o que brota de dentro do próprio território. Valfré, ator, educador e poeta, falou sobre a importância de prestar atenção ao que se escuta além das fronteiras – mas só é possível construir algo autoral e autêntico quando também se ouve as vozes internas, locais.
Valfré apontou essa dificuldade como uma das mazelas da formação cultural do Brasil: a tendência de reproduzir referências externas sem perceber o que constitui a cultura de cada ecossistema de fato. Neste ponto, explicou que o rap é uma das formas de expressão que norteia seus estudos na poesia, além de enfatizar como a produção nacional e, mais especificamente, local, é grande fonte de repertório cultural. Segundo ele, quem detém extenso repertório cultural tem também mais clareza de como deseja se expressar. No entanto, para falar do passado, é preciso compreender os modos de vida e de comunicação que o sustentaram.
A partir desse ponto, Valfré ampliou a discussão para a própria natureza da comunicação humana. O resgate às pinturas rupestres foi um dos exemplos trazidos para mostrar que, independentemente da cultura e do tempo histórico, sempre existiu o desejo de se comunicar e ser visto. A relação entre arte, literatura e história, portanto, nasce desse impulso primordial. Outro ponto enfatizado foi a necessidade de considerar a ótica, o tempo e a forma na hora de escrever sobre memória. Cada forma de expressão é relativa aos recursos e às tecnologias disponíveis em cada época – que instiga questionamentos sobre a consciência dos privilégios atuais, sobretudo diante de um país que ainda convive com altas taxas de analfabetismo. Diante disso, o ator questiona: como as pessoas que não sabem ler ou escrever, privadas da palavra escrita, conseguem se comunicar e deixar registros de sua existência?
Conforme mencionado por Valfré, os seres humanos são agentes históricos que interpretam o tempo em que vivem. Há risco de apenas reproduzir narrativas sem refletir sobre elas caso não haja atenção ao mundo ao redor. Antes de convidar os palestrantes da mesa seguinte, Anderson parafraseou Ailton Krenak, ativista indígena e escritor, e destacou a força de contar histórias como forma de alargar e estender o mundo.
Dando continuidade à programação, o encontro de João Marcos Maciel Luiz e Alexandre de Oliveira Gama foi voltado para escavar a potência da palavra falada como guardiã de histórias e identidades. A palestra, com o nome “Presente da Palavra: oralidade, memória e história nas margens dos documentos oficiais”, refletiu sobre o que se perde – e o que resiste – quando a memória de um povo é reduzida apenas ao que está registrado nos arquivos oficiais.
O diálogo colocou em cena a oralidade como patrimônio vivo, capaz de sustentar narrativas invisibilizadas e de reafirmar presenças que muitas vezes ficam à margem da história formal. João Marcos destacou a importância da palavra falada como um ato político, lembrando que “a memória contada, transmitida entre gerações, desafia o esquecimento e ocupa um lugar que o papel não dá conta”. Já Alexandre, que é historiador, reforçou como essas vozes marginais – de comunidades quilombolas, indígenas, periféricas – carregam um saber que tensiona os limites da historiografia tradicional, ampliando o que entendemos por registro e documento. Parte de sua fala foi complementar à mesa que realizou na estreia do 3.º Fliparacatu na noite de quarta-feira, dia 27 de agosto.
Entre provocações e relatos, os palestrantes chamaram atenção para o risco da homogeneização da memória quando apenas documentos oficiais são considerados como fonte. A oralidade surge, então, como uma espécie de contra-arquivo, capaz de questionar verdades estabelecidas e manter vivas experiências que escapam da letra fria da lei e dos registros burocráticos. Contudo, o resgate dessas informações é mais intrincado, uma vez que, de acordo com as tecnologias e recursos de certas temporalidades, o registro oral não foi catalogado.
Indo além, o encontro também apontou para a responsabilidade da literatura, da educação e da própria pesquisa acadêmica em reconhecer esses modos de transmissão como legítimos e fundamentais para compreender a diversidade da história brasileira. Para além de resgatar o passado, a palavra oral é prática de resistência e como ferramenta de futuro – mesmo se tratando de algo que, muitas vezes, pode referenciar o passado.
3.º Fliparacatu
Com uma programação diversa para todos os públicos, no 3.º Fliparacatu acontecem debates literários, lançamentos de livros, contação de histórias para as crianças, prêmio de redação, apresentações musicais, entre outros. O Festival homenageia os escritores Valter Hugo Mãe e Ana Maria Gonçalves e tem a curadoria de Bianca Santana, Jeferson Tenório e Sérgio Abranches.
O 3.º Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, e tem apoio da Caixa, da Prefeitura de Paracatu, da Academia de Letras do Noroeste de Minas e parceria de mídia do Amado Mundo.
Serviço:
3.º Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu
De 27 a 31 de agosto, quarta-feira a domingo
Local: programação presencial no Centro Histórico de Paracatu e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook – @fliparacatu
Entrada gratuita
Informações para a imprensa:
imprensa@fliparacatu.com.br
Jozane Faleiro – 31 992046367