Por Fernanda Martins

A mesa com a temática “Lavrados, pampas e encruzas” contou com a escritora Claudia Alexandre, a romancista Morgana Kretzmann e a poeta indígena Trudruá Dorrico em um rico diálogo 

O movimento de Exu e os encontros em encruzilhadas marcaram a potente mesa “Lavrados, pampas e encruzas” no início da noite de hoje (28), às 19h, durante o 3.º Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu. A mesa teve a presença da jornalista e escritora Cláudia Alexandre, a romancista Morgana Kretzmann e a poeta indígena Trudruá Dorrico para um diálogo sobre as “encruzilhadas” que conectam as culturas negra, indígena e a luta ambiental no Brasil. A discussão mediada pela escritora Bianca Santana contou com a sinergia entre as autoras, que abordaram como a literatura e a memória ancestral iluminam caminhos de liberdade frente às opressões históricas.

A plateia viveu uma imersão convergente em uma conversa sobre ancestralidade e resistência sob diferentes perspectivas. A conversa começou com a força de Cláudia Alexandre: “mulher de terreiro” e sacerdotisa de Umbanda em um terreiro da família. Antes de iniciar a fala, ela saudou Exu, o território de Paracatu, os ancestrais da terra, os mais velhos que abriram caminhos e a todas as mulheres. “As encruzilhadas em Paracatu têm sido mágicas. Saúdo toda a organização do Fliparacatu por reunir tantos pensadores e acredito que esse encontro foi promovido por Exu”, falou Cláudia ao iniciar a mesa.

Autora do livro “Exu-Mulher” e de “Matriarcado Nagô” (obra vencedora do Prêmio Jabuti 2024), Claudia explicou que sua pesquisa surgiu da necessidade de desfazer a demonização de Exu e resgatar o aspecto feminino dessa divindade africana. “Eu sempre quis argumentar que Exu não era demônio. Falar que Exu está relacionado ao demônio traz prejuízo ao povo negro, desde a chegada do primeiro negro no Brasil”, afirmou, referindo-se à associação racista feita pelos colonizadores entre Exu e o diabo cristão.

A autora falou sobre o movimento de pesquisa e contextualizou a imagem demonizada da entidade que, desde o período colonial, foi deturpada por missionários europeus, que descreveram cultos africanos de maneira intolerante. “Os primeiros missionários que estiveram na África descreviam elementos sagrados dos negros como fetiço, culto à natureza e a objetos sagrados. Eles diziam que aqueles negros faziam culto ao demônio e que precisavam ser batizados para terem alma”, relatou a escritora.

Ela destacou que nesses relatos antigos Exu aparecia associado a esculturas com símbolos fálicos (e também com seios e vulva femininos), porém os colonizadores escolheram silenciar qualquer referência ao feminino. “Ou seja, Exu já sai da África demonizado e masculinizado. É daí que eu começo a escrever ‘Exu-Mulher’…”, contou Claudia, explicando que seu livro reivindica “o lado feminino do orixá” e questiona a exclusão desse aspecto nas religiões afro-brasileiras.

Para Cláudia, essa visão distorcida sustentou séculos de violência contra as religiões de matriz africana. “Hoje, as mulheres negras estão liderando terreiros e sofrendo violência”, observou, mencionando a onda de intolerância religiosa no país. Ela citou casos de invasão e destruição de terreiros: “Cada objeto sagrado representa a própria vida, e quebrar um objeto sagrado é muito violento. O crime do racismo mata duas vezes. Mata na agressão em si e mata de novo quando temos que silenciar sobre a nossa religião.

O processo eurocentrado narrado pela professora Cláudia e a “falta de alma” de povos negros endossada por missionários cristãos em todo processo escravocata vai ao encontro da destruição e do genócidio aos povos indigenas, como bem pontuou Trudruá Dorrico. A poeta e acadêmica, pertencente ao povo Makuxi de Roraima, traçou um paralelo entre a luta indígena e a negra a partir dos pontos levantados por Claudia. Trudruá (autora do livro de contos Eu sou Macuxi e outras) contou ter se lembrado, ao ouvir Cláudia, das narrativas coloniais sobre seu povo: “Foi paradoxal o cristianismo demonizar algo que, ao mesmo tempo, diziam que não tinha alma”, refletiu ao mencionar a visão dos catequistas sobre as divindades indígenas.

Trudruá mencionou as pesquisas realizadas em documentos históricos e em textos da igreja que colocavam os povos originários naquilo que chamou de “encruzilhada da civilização”, em uma retórica dos séculos XVII e XVIII que pintava os indígenas como obstáculos ao projeto colonizador. “Li um livro antigo chamado ‘Índios de Roraima’, publicado pela catequese. A priori seria em defesa dos povos indígenas, mas repetia códigos da igreja, da antropologia colonial, da literatura oficial… Logo nas primeiras páginas, os povos indígenas eram declarados como ‘hostis’”, contou Trudruá. 

Para ela, essa suposta hostilidade nada mais era que a resistência dos nativos à invasão: “Pra mim, era uma resistência à colonização e à escravização”. Assim como ocorreu com Exu e os orixás africanos, a espiritualidade indígena foi demonizada pelos colonizadores e depois folclorizada. Trudruá lembrou que seres do imaginário indígena, hoje conhecidos como lendas folclóricas brasileiras, foram retratados pelos jesuítas como demônios: “O Curupira foi descrito como demônio, o boto virou uma figura que seduz numa perspectiva demoníaca… Essa demonização dos nossos deuses e encantados vai minando os fundamentos do próprio povo”. 

Em tom veemente, Trudruá afirmou que “o genocídio indígena só começou em 1500”  e que ele continua até os dias de hoje, nas inúmeras violências e políticas de apagamento contra os povos originários. “Não temos compromisso com aqueles que querem nos dominar. O nosso compromisso é com a liberdade”, declarou, recebendo aplausos do público. E, num questionamento que ficou no ar, ela provocou: “Será que podemos confiar em um cristão hoje?”. 

Morgana Kretzmann trouxe para o centro da discussão e para a encruzilhada do Fliparacatu, o ativismo ambiental e toda a violência sofrida pelo jornalista britânico Dom Phillips e pelo indigenista brasileiro Bruno Pereira, assassinados em 2022 quando investigavam crimes ambientais no Vale do Javari. Autora do romance “Água Turva”, ela se emocionou ao comentar que jamais imaginaria dividir uma mesa com Claudia Alexandre, “uma professora que tanto admiro”, e com Trudruá, “uma irmã que vai lá em casa tomar sopa”. Essa conexão entre as três autoras simbolizou, para Morgana, a própria ideia de encruzilhada como encontro fecundo de caminhos pessoais distintos.

Em sua fala, Morgana abordou as encruzilhadas da Amazônia e o custo de se dizer a verdade sobre elas. Ela também revelou sobre o desafio de escrever um conto que dialogasse com o livro póstumo que Dom Phillips deixou. “Foi difícil: primeiro porque não sou cronista, e segundo porque é complicado falar de alguém que morreu dessa forma”, confessou. O resultado desse desafio foi o conto “Nome Floresta: Um conto em homenagem a Dom Phillips”, no qual Morgana mescla realidade e ficção para reverenciar o legado do jornalista. A obra narra o encontro transformador entre uma menina ribeirinha e um repórter estrangeiro na Amazônia, explorando a importância de dar voz à floresta e de denunciar as ameaças que ela enfrenta.

A mesa “Lavrados, Pampas e Encruzas” encerrou em clima de celebração da resistência. Bianca Santana, jornalista e mediadora do debate, sintetizou o sentimento geral ao lembrar que, apesar de séculos de opressão, a arte da palavra segue rompendo correntes. “Apesar do racismo, do machismo, do genocídio, estamos aqui comprometidas com a liberdade e fazendo literatura”, finalizou Bianca. 

O Festival

Com uma programação diversa, para todos os públicos, no 3.º Fliparacatu haverá debates literários, lançamentos de livros, contação de histórias para as crianças, prêmio de redação, apresentações musicais, entre outros. O Festival homenageia os escritores Valter Hugo Mãe e Ana Maria Gonçalves e tem a curadoria de Bianca Santana, Jeferson Tenório e Sérgio Abranches.

O 3.º Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, e tem apoio da Caixa, da Prefeitura de Paracatu, da Academia de Letras do Noroeste de Minas e parceria de mídia do Amado Mundo.

Serviço:

3.º Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu

De 27 a 31 de agosto, quarta-feira a domingo

Local: programação presencial no Centro Histórico de Paracatu e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook – @‌fliparacatu

Entrada gratuita

 

Informações para a imprensa:

imprensa@fliparacatu.com.br

Jozane Faleiro  – 31 992046367