Por Fernanda Martins

Mesa de encerramento desta sexta-feira (29) no Fliparacatu 2025 reuniu Luciany Aparecida, Deivison Nkosi e Geni Núñez em uma reflexão sobre literatura, identidade e resistência

A mesa Descolonizar o literário fechou a programação da 3ª edição do Festival Literário Internacional de Paracatu —  Fliparacatu 2025, nesta sexta-feira (29). A conversa reuniu os autores Luciany Aparecida, Deivison Nkosi e Geni Núñez, que provocaram o público a pensar a literatura para além das fronteiras impostas pela colonização. O debate trouxe diferentes perspectivas sobre o poder do imaginário, da palavra e da resistência como ferramentas para reescrever mundos possíveis.

A escritora Luciany Aparecida abriu a mesa afirmando sua identidade: “Sou uma baiana e essa é a principal parte da minha biografia.” Para ela, assumir esse pertencimento é também um gesto político. Pensar literatura é pensar o imaginário e imaginar, embora pareça simples, não é igualmente permitido a todos. “Existem imaginários que são apontados a lugares clichês. O Brasil é cheio dessas fronteiras, desses recortes. A literatura é amarrada assim e ela é lida a partir de temas clichês”, afirmou.

Ao reivindicar o direito de imaginar fora dessas amarras, Luciany desloca o olhar para corpos, histórias e territórios que a lógica colonial tenta silenciar. Coloca no centro de suas narrativas mulheres negras e personagens rurais, recusando a ideia de que o campo seja apenas resquício do passado. “Quando decido escrever, o rural não aparece como lugar anacrônico em oposição ao urbano como evolução. Para mim, o rural é espaço vivo, capaz de inspirar emoção, riso e lágrimas”, explica, ressaltando: “Interessa-me pensar o rural não como ambiente esgotado na literatura, mas como ambiente que pode inspirar movimento, rir e chorar, criar novas personagens”.

Essa disputa pelo imaginário dialoga com a leitura do sociólogo e “maloqueiro” Deivison Nkosi, que trouxe para a mesa a figura de Calibã, personagem de A Tempestade, de Shakespeare. Subjugado por Próspero, o europeu que invade e domina a ilha, Calibã representa o sujeito colonizado (aquele que a existência só ganha sentido a partir do olhar do colonizador). Mas há um ponto de ruptura: ao usar a língua do dominador para amaldiçoá-lo, Calibã transforma a opressão em resistência. “A melhor definição de descolonialismo está em Shakespeare, no Calibã de ‘A Tempestade’. Ele mostra como a colonização não apenas ocupa territórios, mas também aprisiona imaginários”, define.

Para Nkosi, “a língua não é só um sistema vazio. Ela já imprime um olhar. Se a única língua é a europeia, ela se torna parâmetro único de humanidade.” Ele explica que a encruzilhada não é apenas metáfora, mas condição existencial e política. É o lugar em que múltiplas tempestades (de classe, de raça, de gênero) se cruzam, revelando tanto os limites da linguagem colonial quanto as possibilidades de resistência. Na encruzilhada, não se trata de evitar o muro, mas de assumir a identidade em confronto com ele. É ali que Calibã, ao encontrar Exu, descobre caminhos de multiplicidade e potência, transformando a maldição em força criadora. Nesse território, a escolha se torna gesto de autoria e a identidade deixa de ser imposta para ser afirmada.

Já a psicóloga e escritora guarani Geni Núñez reforçou que descolonizar o literário exige resgatar a dimensão coletiva da palavra. “Eu chego aqui e não chego só. Estou aqui devido à luta do meu povo”, iniciou. A autora explicou que, em guarani, o “nós” tem muito mais força do que o “eu” e inclui até aqueles que não são humanos, ampliando a ideia de pertencimento. Para Geni, a palavra não se reduz à comunicação: carrega uma dimensão de encantamento profundamente ligada à espiritualidade guarani. Essa visão confronta o projeto colonial, que sempre se apresentou “em nome do bem, da família e do mundo”, mas que, na prática, restringiu quem pode ou não ser reconhecido como humano. “Não sinto elogio em ser chamada de humana. O que me orgulha mesmo é ser chamada de guarani”, afirmou.

Ao fim, as três vozes se encontram na mesma direção, e o conceito de “reflorestar o imaginário” trazido por Geni ecoou em todo o teatro. A ideia sintetiza o gesto de Luciany ao afirmar o rural e as mulheres negras como centro de suas narrativas, de Nkosi ao convocar Calibã para atravessar a encruzilhada com Exu, e da própria Geni ao reivindicar a palavra como território coletivo e espiritual.