Texto por Eugênio Bucci, publicado em 03/09/2025 no portal PublishNews

Foto por @alnereis

Embora cada um dos eventos tenha sua personalidade própria, todos têm características comuns inconfundíveis

Acabo de voltar do Fliparacatu, que aconteceu na cidade mineira cujo nome, claro, é Paracatu. Eu não conhecia o lugar. Adorei conhecer. Acompanhei de perto, nas primeiras fileiras, boa parte dos painéis em que gente das letras falou de seu ofício. Que beleza que foi. Também participei de uma mesa sobre “Palavra e Ética”, ao lado de Jeferson Tenório e Míriam Leitão, com mediação de Lívia Sant’Anna Vaz. Olha, tirando a minha parte, a conversa foi uma iluminação sobre as encruzilhadas desse mundo tão desumanizado. Auditório lotado, com cerca de 400 pessoas.

Foi a minha primeira vez em Paracatu, como eu já disse, e como valeu a viagem. Afonso Borges, o grande inspirador e organizador do evento, é o mais sensível, generoso e visionário fazedor de festivais literários no Brasil. Se você me conceder um pouco mais da sua atenção, prometo que vou explicar aqui, de modo convincente, o que me leva a dizer isso.

Além do Sempre um Papo, um projeto que tem aí mais de 40 anos e que já levou mais de 8.000 autores a falar para plateias de 40 cidades brasileiras, entre elas Brasília, Belo Horizonte e São Paulo (onde está há 23 anos em parceria com o Sesc-SP), Afonso se dedica também a organizar esses encontros de escritoras e escritores nesses festivais locais. Ele é o coração por trás do Fliaraxá, que já está em sua 13ª edição (estive em algumas delas), do Flitabira, na terra natal de Carlos Drummond de Andrade, em sua 5ª edição, onde também já bati o ponto, e do Flipetrópolis, que vai realizar a 2ª edição no fim de novembro, no Palácio de Cristal.

Embora cada um desses tenha sua personalidade própria, todos têm características comuns inconfundíveis, uma espécie de marca registrada da assinatura de Afonso Borges. A integração com a comunidade é uma delas. A cidade se envolve, as escolas se envolvem, as autoridades se envolvem, o povo se envolve. Mas isso já foi muito falado e não preciso me estender a respeito.

A presença de autoras e autores negros e indígenas é outra marca. A cultura que aparece nessas verdadeiras festas de letras é uma cultura diversa e fervilhante, e não só em matéria de etnias, tons de pele, matrizes e tradições. A diversidade também aparece nas orientações sexuais e de gêneros, o que também precisa ser anotado aqui. Trata-se de um compromisso estético e político com as diferenças que cimentam nossa coesão cultural, um ponto altíssimo desse trabalho, que seguramente já transformou, para melhor, a cena artística e intelectual do Brasil. Haveria outras características, muitas outras, mas, neste meu pequeno depoimento, quero destacar apenas duas, que não são tão aparentes assim.

Mudando destinos

A primeira delas é uma intensa e atenciosa dedicação a crianças e adolescentes nas escolas da cidade que hospeda o Festival. Estou falando de um conjunto de atividades que vão do incentivo à leitura aos concursos de redação. Em todas as edições, os livros infantis são uma atração forte, com formatos originais, comprovadamente eficazes e em constante renovação. Este ano, por exemplo, surgiu outra novidade em Paracatu: o editor Bernardo Ajzenberg, da editora Seja Breve, liderou uma sessão de leitura chamada “Maratona Seja Breve”, que durou quatro horas, em que adolescentes e jovens escolheram um livro curto para ler. Inteirinho. Imediatamente após o encerramento da leitura, eles redigiram um texto. Os 10 melhores foram premiados, com louvor e dinheiro.

O que normalmente não se percebe é que um programa simples e fácil como esse tem potencial de mudar uma vida – ou muitas vidas. São jovens que despertam para a escrita, para a arte, para a vida acadêmica ou para a educação. Já são dezenas de casos de pessoas que começaram por aí e hoje desenvolvem carreiras de sucesso, inclusive nos festivais do Afonso. É por isso que afirmo: temos aí um modelo imbatível de política pública cultural que acende e forma talentos, assim como expande os horizontes de muita gente. Sem termos de comparação.

Reenergizando autoras e autores

Em segundo lugar, eu gostaria de comentar o congraçamento entre escritoras e escritores nessas festas de Afonso Borges. Este ano, estiveram em Paracatu setenta dessas pessoas tão incomparáveis, tão únicas, essas pessoas que, imagine, escrevem livros. Pois todas elas vão até lá e se reúnem de verdade, conversam, trocam autógrafos, jantam juntas, contam de seus impasses criativos, escutam-se. Às vezes tenho a impressão de que elas formam uma grande irmandade. Todas saem desses festivais fortalecidas e revigoradas, o que me leva a uma conclusão de que esses encontros fazem um bem enorme para a literatura e suas adjacências. Aqui também temos uma política pública se realizando, mesmo que mais interna, mais íntima, nem tão exposta assim.

Tem mais. É bonito ver como autores e autoras, depois do jantar, no mesmo salão, se põem a cantar juntos. Eu mesmo nunca tinha visto nada parecido até começar a frequentar os festivais do Afonso. Eu sei que as academias de letras incentivam o convívio, o que é sempre bem-vindo, mas nada se compara a essas confraternizações como essas do Fliparacatu, do Flitabira, do Fliaraxá e do Flipetrópolis.

Não é pouco. Todo mundo que escreve realiza um trabalho irremediavelmente solitário. O contato com o público sempre contribui para que se tenha um pouco de fibras reais que temperam a solidão de escrever, mas o contato próximo com os semelhantes, entre os pares, é insubstituível. Quem vive de escrever se reconhece e se aprimora. Fica mais forte.

Antes de terminar estas linhas, é imperativo que eu deixe um abraço, aquele abraço, para Sérgio Abranches, Bianca Santana e Jeferson Tenório, que respondem pela curadoria de todos esses festivais. Eles montam as programações, convidam gente, pautam os painéis e põem ordem na folia criativa. Mando meu abraço a essas três figuras sem igual porque a elas sou muito grato.

Sou grato também a Ana Maria Gonçalves e Valter Hugo Mãe, que receberam homenagens do Fliparacatu deste ano, como nomes maiores da literatura. Em sua palestra final, Valter lembrou que nunca a humanidade teve tanto acesso ao conhecimento e que, paradoxalmente, nunca resistiu tanto ao conhecimento. As provas disso nos massacram: triunfa o que é sombrio, opressor e tirânico. Valter Hugo Mãe não desiste e nos convida a não desistir. O entusiasmo com que ele se entrega à escrita, à descoberta e a tanta gente que o lê com tanto encantamento também é parte da receita e o segredo da arte dos encontros. Segundo Afonso Borges, Valter está do lado certo. A literatura também.

 

Eugênio Bucci, jornalista, é professor titular da ECA-USP. Escreveu, entre outros livros, “A superindústria do imaginário” (finalista do Jabuti) e “Incerteza, um ensaio” (ganhador do Jabuti Acadêmico), ambos pela Editora Autêntica. Está lançando este ano outros dois títulos: “A razão desumana” (Autêntica) e “Que não se repita” (Editora Seja Breve). Escreve quinzenalmente para o jornal O Estado de S. Paulo e integra a Academia Paulista de Letras.