Por Fernanda Martins

 

Escritores discutem como encruzilhadas da vida se transformam em literatura e reflexão sobre ancestralidade e humanidade

Descobertas da vida foi tema da mesa da tarde de hoje (29), que cruzou histórias potentes, identitárias e reflexivas de Trudruá Dorrico, Ricardo Prado e Estevão Ribeiro, durante a 3ª edição do Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu 2025. A conversa reuniu vozes diversas para discutir os caminhos de identidade, memória e realização pessoal por meio da literatura e da arte. O encontro foi mediado pela escritora Alessandra Roscoe, que iniciou convidando o público a se aproximar da mesa para um diálogo “olho no olho”. Conectando a conversa ao tema central do evento, “Literatura, Encruzilhada e a Desumanização”, Roscoe instigou reflexões sobre como as encruzilhadas da vida levam a descobertas transformadoras.

Trudruá Dorrico, escritora Makuxi e doutora em teoria da literatura, abriu a mesa com a palavra “descoberta”. Ela revelou incômodo com o termo, que considera “um substantivo cruel para povos originários”, aludindo ao histórico colonial por trás das “descobertas” impostas aos povos indígenas. Trudruá contou que sempre foi leitora voraz desde a infância, começando pelos gibis de Mauricio de Sousa, e frequentava bibliotecas públicas. Contudo, na adolescência, muitas leituras de romances clássicos pareciam distantes e incompreensíveis. Somente anos depois, já adulta, teve um momento transformador ao se deparar com a literatura indígena contemporânea, que lhe apresentou vozes e histórias com as quais pôde se identificar plenamente.

Ela compartilhou um poema-paradoxo marcante dessa fase de redescoberta identitária: “Antigamente me chamavam de índia para me ofender. Hoje que falo que sou indígena com orgulho, dizem que eu não sou. Agora que tenho orgulho, não sou?” A escritora relatou ainda como esse reencontro consigo mesma a levou a “entrar na mata” (metáfora para falar da reaproximação com suas origens) e a reviver a adolescência negada. Nesse processo, descreveu memórias da infância ribeirinha e os caminhos dessa reconciliação: “Parei de ter medo do sol”, disse, lembrando o dia em que caminhou dez quilômetros sem receio de escurecer a pele.

Em outro momento, emocionou o público ao afirmar que “seu rosto deixou de ser indesejado” quando abraçou sua ancestralidade e sentiu, finalmente, a paz com sua imagem e história. Contou que todas essas vivências são canalizadas para sua literatura, celebrando a identidade indígena em obras como Eu sou Macuxi e outras histórias.

A memória também esteve no centro da fala de Estevão Ribeiro, escritor capixaba e cartunista, que refletiu sobre sua trajetória de descobertas. Caçula de seis irmãos, lembrou que aprendeu a amar a leitura com os gibis de Mauricio de Sousa. Na juventude, aventurou-se como roteirista de quadrinhos, mas confessou que por muito tempo se sentiu um “erudito deslocado” nesse meio.

Ele destacou a invisibilização e as lacunas de memória sobre si mesmo. Devido às condições precárias da família, quase não possuía registros da infância, nenhuma fotografia na qual pudesse se reconhecer. “Meus amigos imaginavam que eu era um cara gordo… Eu não era. Eu era magro e cabeçudo”, comentou com humor, ilustrando as percepções criadas na ausência de memória visual.

Para escrever e ilustrar histórias mais pessoais, embarcou em um resgate de lembranças. “Eu precisei resgatar a minha própria memória para me desenhar nas histórias”, afirmou, descrevendo esse processo como sua redescoberta enquanto artista e indivíduo. O resultado foi a coletânea de crônicas Salve, Rainha! e outras histórias.

Nesse livro, em que o primeiro conto traz uma personagem trans que retorna à terra natal em busca de reconciliação familiar, numa referência à Tieta, de Jorge Amado, Estevão explora o reencontro com suas origens capixabas. Confessou que, durante muito tempo, cultivou uma relação de ódio com sua cidade e sua pátria: “A negritude me veio como negação em um espaço hostil”, disse, lembrando as dificuldades de crescer como homem negro em um ambiente provinciano.

Em seguida, o maestro e escritor Ricardo Prado trouxe ao debate uma reflexão sobre a busca de propósito por meio da arte. Nascido no Rio de Janeiro, iniciou-se como regente orquestral em São Paulo, sob a orientação de Camargo Guarnieri, construindo uma trajetória premiada internacionalmente. Contou que sua relação com a música começou ainda na gestação: ao saber da gravidez, seu pai presenteou a mãe com um piano. “Fui comemorado com música”, recordou. Cresceu embalado por canções de ninar compostas pelos pais e, já criança, dividia o quarto com as irmãs até conquistar um espaço próprio: o cômodo em que ficavam o piano materno e a estante de livros paternos. Assim, literatura e música se entrelaçaram em sua formação.

Na hora do vestibular, enfrentou uma encruzilhada: seguir literatura ou música. Tentou Economia, mas abandonou o curso após três semestres, decidido a se dedicar à arte. Levou para São Paulo um caderno cheio de composições juvenis, que mostrou a um professor. O impacto veio rápido: “O que você faz é muito ruim”, contou entre risos. Em vez de desistir, aceitou o desafio do mestre: dedicar-se ao aprendizado e reservar parte da carreira à educação musical. Cumpriu a promessa. Além de reger, dirigiu a Escola de Música Villa-Lobos.

Afastado dos palcos há quase duas décadas, Ricardo hoje se dedica integralmente à literatura. Explicou que, mesmo em meio às glórias da regência, sentia falta de um sentido mais profundo. Na literatura, encontrou a liberdade que buscava. Após anos de carreira de costas para o público, conduzindo orquestras, vibra agora com a possibilidade de dialogar diretamente com leitores. “Esse encontro com o público é muito saboroso”, afirmou.

A mediadora Alessandra Roscoe encerrou a mesa com uma provocação: “a criança que sonha e acontece” e “o adolescente que acredita que vai mudar o mundo”. Ambos, concordaram, precisam ser nutridos com arte e literatura. “Não há nada mais potente do que partilhar leituras”, destacou.