Literatura como caminho de retorno

As autoras Lília Guerra, Myriam Scotti e Míriam Leitão contaram como é escrever à margem e o reencontro com identidade, memória e pertencimento

 

Vamos começar a gíria!”. Foi assim que a poeta e psicanalista Eliane Marques iniciou os trabalhos da mesa Margem-Mulher, durante a 3ª edição do Festival Literário Internacional de Paracatu com a presença das autoras Myriam Scotti, Lília Guerra e Míriam Leitão. Eliane mediou a mesa na tarde de hoje (29) e, logo na abertura, ela lembrou que estamos em uma encruzilhada histórica, palavra-tema do Festival, e lançou a provocação que guiou a conversa. Eliane foi veemente em dizer que não se tratava mais de perguntar se as mulheres ainda estavam à margem, mas de entender como elas caminham por essas margens.

A força da indagação trouxe a fala de Lília Guerra, escritora e auxiliar de enfermagem no SUS, moradora do conjunto Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, para a conversa. Ao narrar sua trajetória, a autora descreveu o cotidiano de quem vive às bordas do centro e do reconhecimento. Ela contou que começou a escrever para registrar a vida das mulheres de sua família, sobretudo da avó, Dona Júlia. 

As histórias guardadas em caixas de papelão pela mãe se transformaram em literatura, preenchendo as lacunas de uma identidade marcada pela ausência do pai. “Toda vez que eu escrevo, eu volto para esses lugares. Estamos à margem sim, mas a nossa voz tem sido ouvida, lida”, disse. O ato de narrar é, para ela, uma forma de voltar para casa e dar nome a quem tantas vezes foi reduzido ao silêncio.

A ideia do retorno também atravessou a fala de Myriam Scotti, escritora amazonense que lembrou o sentimento de exclusão ainda na infância, quando não cabia nos padrões esperados do corpo ou do gênero. Mais tarde, já formada em Direito, Myriam experimentou a marginalização em um ambiente masculinizado e, na maternidade, a solidão do pós-parto. E foi a literatura que a resgatou desses silêncios. “Experimentei sensações e foi a literatura que me resgatou e me fez aprender a nomear o que eu estava sentindo”, contou a autora. 

A autora ainda destacou a condição de ser uma escritora nortista, muitas vezes vista por um olhar de exotismo. “Quando eu falo do Amazonas, as pessoas têm um panorama de exotismo”, afirmou. No entanto, na escrita, Scotti busca recentrar esse território, dando protagonismo às vozes amazônidas: “Eu tinha dado as costas para o rio [referência à construção de Manaus], e foi a literatura que me convocou a olhar para minha casa como se fosse a primeira vez”. 

A escritora Míriam Leitão, por sua vez, começou a fala saudando a “confreira” Ana Maria Magalhães e avisou que está à espera da posse na Academia Brasileira de Letras. Ela saudou e ofereceu um abraço apertado para a escritora Lila. “O SUS nos salvou de tudo”, falou enquanto a plateia concordava entre palmas. Ela também trouxe a “Terra úmida” de Myriam Scotti. 

Na fala, ela trouxe a memória de outras margens: a de ser jornalista em redações dominadas por homens nos anos 1970, em que foi demitida repetidas vezes para ouvir, nas entrelinhas, que não pertencia àquele espaço. “Não era fácil”, resumiu. Miriam relatou também a experiência extrema de estar na solitária durante a ditadura, grávida e sem acesso a livros. Para ela, foi a memória das leituras da infância que a manteve em pé.“A gente se humaniza na literatura; a gente luta contra tudo que nos desumaniza”, afirmou Míriam.

Entre as falas, Eliane Marques costurava o fio da conversa, trazendo a ideia de “voltar para casa”, inspirada em Nego Bispo. Cada autora respondeu a essa convocação à sua maneira. Para Lília, voltar é reencontrar a avó e a periferia nos textos. Para Myriam, é necessário se reconciliar com Manaus e o Amazonas. Enquanto para Míriam Leitão, é preciso reconhecer que os livros sempre foram o abrigo de reconstrução.

A mesa também abriu espaço para o futuro. Lília Guerra reafirmou a importância de fazer ecoar vozes que antes não eram ouvidas. Myriam Scotti mostrou que a margem pode ser lugar de criação e não apenas de exclusão. E Míriam Leitão contou um segredo que empolgou a plateia: “Eu nunca escrevi sobre a questão feminina. A mulherada já foi à frente e eu estou aqui lendo essas mulheres. Mas aconteceu que comecei a escrever um livro de ficção. Hoje, estou quebrando um protocolo. Eu não falo de livro sendo escrito [risos]. É uma distopia feminista e está sendo o livro mais dificil de fazer, talvez porque ele seja tão meu que esteja tão dificil de sair.  Este livro veio do momento que eu sofri o massacre da extrema direita e comecei a escrever a história de uma mulher que sofreu o lixamento. O nome dele é A dança de Elisa. Ele está indo e vai sair um dia”.