Mesa de encerramento emocionou tanto o público quanto os escritores homenageados, marcando a história do Fliparacatu

 

por Gabriel Pinheiro

 

Um dos momentos mais aguardados da terceira edição do Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu – teve início na noite deste sábado. A mesa “Um defeito de desumanização” reuniu os dois autores homenageados desta edição do evento literário: a Imortal da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Gonçalves, e um dos maiores nomes da literatura portuguesa, Valter Hugo Mãe. Os homenageados se uniram ao curador do Fliparacatu, Sérgio Abranches, anfitrião desta noite especialíssima.

 

“Um defeito de desumanização” coloca em diálogo as obras dos dois escritores: “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, e “A desumanização”, de Valter Hugo Mãe. Os livros também nortearam o tema central deste Fliparacatu, “Literatura, encruzilhada e a desumanização”, como bem destacou Sérgio Abranches logo no início da conversa. “É tão honroso homenagear esses dois autores. Uma alegria tão grande revê-los. E eu queria dizer que tem uma excelência de literatura e de pessoas públicas aqui nessa mesa”, destacando a postura pública dos dois homenageados frente a questões fundamentais da democracia e dos direitos humanos.

 

“Que país é esse em que o racismo precisou de uma lei para ser proibido?”, abriu de maneira contundente sua fala Ana Maria Gonçalves, celebrando Afonso Arinos, autor paracatuense Patrono do Fliparacatu que dá nome à primeira Lei brasileira a punir a discriminação racial, estabelecendo o preconceito de raça ou cor como contravenção penal.

 

Ana também saudou a confreira de ABL, Miriam Leitão, presente no Festival. “Com certeza vamos lutar para que sejamos muitas mais mulheres lá dentro. Pra mim é uma responsabilidade muito grande ser a primeira mulher negra em 128 anos de academia. Sou a primeira mas não serei a única.”

 

Ana agradeceu Valter Hugo Mãe pelo desenho que ganhou dele representando o Sankofa, um pássaro que volta a cabeça para trás enquanto voa para a frente. Sankofa é um conceito e símbolo de origem africana que simboliza a importância de olhar para o passado para aprender com ele, a fim de construir um futuro melhor. O pássaro é a marca do Fliparacatu, com desenho também criado por Valter Hugo Mãe.

 

Ela, então, fez a leitura de uma carta em agradecimento ao colega homenageado: “Rio de Janeiro, 7 de setembro de 2025. Preto e vermelho são suas cores, abre os caminhos com ela. (…) Querido amigo Valter, abro essa carta com o poema mineiro Edimilson de Almeida Pereira. (…) Pense bem nessas palavras, Valter, porque o que elas evocam não é só conhecimento, mas pura ancestralidade. (…) Obrigada, esperando te encontrar em breve, peço que minha mãe Oxum te acompanhe. Da amiga Ana, Paracatu, 30 de agosto de 2025”.

 

Emocionado com a carta lida por Ana Maria Gonçalves, Valter Hugo Mãe deu início à sua fala agradecendo-a. “Ana Maria Gonçalves é uma autora que eu leio desde muito tempo. Não me surpreendeu o livro dela, esse monumento, ser o livro mais importante deste século escrito no Brasil. (…)”. Sobre o seu próprio trabalho, ele refletiu: “Eu aceito o meu lugar de quem tem fascínio pelos outros. Eu escrevo sempre porque eu procuro escutar o mundo. Eu juro que eu escrevo não porque eu tenho um lugar de fala, mas tenho um lugar para escutar. É minha forma de encontrar o outro. Esta sua carta me comove muito, Ana”.

 

Valter Hugo Mãe homenageou Isabel Lhano, sua melhor amiga de toda a vida, que encantou-se há dois anos, como nos ensinou João Guimarães Rosa. “É o segundo ano que eu passo o aniversário de Isabel sem Isabel. Vocês não estão vendo Isabel, mas ela está em todos os lugares.” Valter dedica e escreve sobre a grande amiga em seu novo livro, “Educação da tristeza”.

 

“A grande crise da humanidade tem a ver com sabermos uma coisa e fazermos outra. Por que razão isso acontece? Na verdade, só aprende quem muda. Aprender alguma coisa é mudar. (…) É o gesto que acusa a educação, é o gesto que acusa a humanidade. Será que, na verdade, não queremos ser humanos? (…) Na verdade, o que estamos fazendo é adiar a possibilidade de nos reconhecermos verdadeiramente como humanidade”, refletiu o escritor português sobre a desumanização. “A humanidade é esse caminho em direção ao esplendor dos gestos”, e não em direção à normalização do horror”, ele complementou.

 

“Muita gente tenta me convencer que é normal, que o ser humano é assim. (…) O ser humano não é isso. Nós ainda não somos humanos. (…) A gente como coletivo, como multidão, deve ganhar noção: Ou aceitamos aquilo que sabemos e mudamos o gesto ou nos entendemos apenas como bichos e não devemos ser declarados como humanidade”, Valter Hugo Mãe prosseguiu num discurso profundo e emocionante.

 

Sérgio Abranches perguntou sobre os projetos de escrita de Ana Maria Gonçalves, brincando saber bem qual o texto que a escritora deve estar escrevendo no momento: seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Ana respondeu que tem alguns projetos simultâneos que devem sair muito em breve. Um deles, uma obra de não ficção sobre a menopausa.

 

Ela compartilhou com o público parte de sua pesquisa. “As mulheres em menopausa são desvalorizadas, como alguém que não serve mais pra nada dentro da sociedade. Eu estou com 54 anos, me sentindo mais ativa do que nunca.” Valter, a partir da fala de Ana, destacou a importância de que pesquisas sobre o corpo feminino, que durante muito tempo foram dominadas pelos homens, sejam realizadas por mulheres: “Eu li um texto que dizia que algumas mulheres que, na menstruação, sentem dores semelhantes às de um ataque cardíaco. É demolidor”.

 

Valter Hugo Mãe celebrou Amara Moira, escritora convidada deste Fliparacatu, autora de “Neca: romance em bajubá”, falando sobre a experiência da leitura deste livro singular. “Terei sonhos com esse livro nesta noite”, ele brincou.

 

O curador Sérgio Abranches perguntou para Ana Maria Gonçalves sobre a escolha de sua obra-prima como samba-enredo do desfile da Portela no carnaval Rio de Janeiro. “Ainda não consigo apreender isso em palavras. Uso muito um verbo que aprendi: ‘entanga’, que significa ao mesmo tempo dançar e escrever. O desfile reuniu esse verbo.” Ela falou sobre o encontro da literatura com o carnaval carioca: “Meu livro é uma longa carta de uma mãe para o filho. O desfile foi uma carta de um filho para mãe. Eles fizeram algo que o livro não fez que foi colocar mãe e filhos juntos”. A escritora destacou a maneira como o livro, a partir do desfile, atingiu um novo público. “Desfilar contando essa história fez com que esse livro atingisse um público que a literatura não atinge.

 

Valter comentou sobre a escrita de seu novo livro, “Educação da tristeza”. “Não é bem um livro. São textos que fui escrevendo ao longo de um processo de luto”, ele pontuou. “Esses textos aconteceram porque morreu alguém e eu não consegui não escrever. (…) Eu necessitei de falar com ela (Isabel).(…) Foi importantíssimo pra mim. (…) Não é bem um livro, foi um modo de respirar. Foi uma forma de eu me educar.”

 

Ao fim, Sérgio Abranches pediu para que os homenageados se despedissem de Paracatu – apenas um até breve, na verdade. Valter brincou dizendo que não iria se despedir e continuariam a conversa ininterruptamente. Ana Maria Gonçalves leu um trecho de seu novo trabalho acerca da menopausa anteriormente citado.

 

Antes do encerramento, Sérgio pediu para que o público homenageasse com palmas Valter Hugo Mãe e Ana Maria Gonçalves. Os dois escritores, então, foram ovacionados por um público apaixonado. Viva a literatura de Ana Maria Gonçalves! Viva a literatura de Valter Hugo Mãe!

 

3.º Fliparacatu

 

Com uma programação diversa, para todos os públicos, no 3.º Fliparacatu haverá debates literários, lançamentos de livros, contação de histórias para as crianças, prêmio de redação, apresentações musicais, entre outros. O Festival homenageia os escritores Valter Hugo Mãe e Ana Maria Gonçalves e tem a curadoria de Bianca Santana, Jeferson Tenório e Sérgio Abranches.

 

O 3.º Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, e tem apoio da Caixa, da Prefeitura de Paracatu, da Academia de Letras do Noroeste de Minas e parceria de mídia do Amado Mundo.

 

Serviço:

3.º Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu

De 27 a 31 de agosto, quarta-feira a domingo

Local: programação presencial no Centro Histórico de Paracatu e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook – @‌fliparacatu

Entrada gratuita

 

Informações para a imprensa:

imprensa@fliparacatu.com.br

Jozane Faleiro  – 31 992046367