Esta entrevista é de autoria do jornalista Alberto Villas, publicado originalmente no jornal eletrônico diário OSOL.
“Eu não enxergo palavras ao escrever”
Produção de Marcia Dal Prete
O currículo de Lucas Guimaraens é tão robusto que a gente nunca imagina que ele nasceu em 1979. Robusto no quesito graduação, master 1, mestrado, doutorado e por aí vai. Minha mãe, mineira como ele, diria: “Esse menino é um crânio!”. É mesmo. Poeta de mão cheia, como se diz nas Gerais. Ainda bem que sobrou uma linha pra dizer que ele é bisneto de Alphonsus de Guimaraens.
Você tem um currículo de tirar o fôlego. O tempo para você não para?
Bom, o tempo não para. No entanto, sempre tive uma sede e uma rede para concretizar sonhos. E nunca me desgarrei de nenhum deles. De modo que, ao longo do tempo, todos os trabalhos se sobrepõem simultaneamente e diariamente.
Em meio a tanta atividade e estudo, como se recolhe para traduzir em poesia o que vê e sente?
Não há poesia sem vida. Para mim, quanto mais intensa é a vida, quanto mais intensos são os dias, mais poesia é possível. A poesia é a única forma, ou melhor, a arte é a única forma para compreendermos a nós mesmos, ao mundo e aos outros, como diria o amigo e filósofo francês, responsável por cunhar a expressão “pós-moderno”, Jacques Poulain.
Milton Nascimento falou que sua poesia é feita de palavras e cores. E eu incluiria também movimento. Você enxerga imagens ao escrever?
Decididamente, eu não enxergo palavras ao escrever. Tudo é imagem. Tudo são frames. Ou seja, são imagens em movimento. É uma poesia de deslocamento. Talvez, por isso, minha atenção especial aos surrealistas.
Dizem que filho de peixe peixinho é. Você sente o DNA que carrega de seus ancestrais poetas?
Eu não sei bem dizer do que se trata o DNA, a hereditariedade. Quando se trata de arte, de poesia, a genética não chegou a nenhuma conclusão. Carrego, sim, a leitura de todos os poetas e escritores de minha família, bem como a admiração por eles. Isso é um DNA poético? Não sabemos. Mas é verdade que se trata de 400 anos de poetas ininterruptamente.
Um passo no passado, outro no futuro. Uma imersão para dentro e outra pra fora. Sua poesia é como um sonho, não tem essa lógica do tempo humano?
A verdade é: quem inventou a lógica do tempo humano? A lógica são várias lógicas, na verdade. Assim, trabalho com o que se pode chamar de lógica de sonhos, no sentido de que a própria vida também é sonho, ou seja, mais imaterial do que material. Mas sempre fincada na realidade dura do mundo.
Você anda com caderninho para anotar suas ideias?
Eu já andei, na época em que morava na Europa, com um caderninho Moleskine. No entanto, hoje, eventualmente, quando aparece uma ideia, temos o celular às mãos, o que se tornou o meu caderninho.
O lugar mais poético que já visitou?
Pergunta difícil. Mas vou às minhas raízes. Ouro Preto e Mariana, em Minas Gerais. Sobretudo Mariana. O que existe mesmo são experiências poéticas. Independentemente do local.
E o lugar mais caótico que também o inspirou?
Essa é fácil. Istambul, na Turquia. Quando fui convidado pelo Ministério das Relações Exteriores da Turquia para o Festival Internacional de Poesia de Istambul. Isso gerou um livro. Ou parte de um livro. Fui confundido com um terrorista procurado, perdi o motorista que me aguardava, ninguém falava inglês, francês, espanhol ou alemão, estava realmente no caos. Mais uma vez o local em si não é caótico. A experiência é que é. Já visitei muitos países. O caos verdadeiro é a miséria e a iniquidade.
Um exílio voluntário.
Sim, no meu caso, um exílio voluntário. Principalmente Paris. Foi o gatilho para o meu penúltimo livro. No entanto, há o exílio mais cruel. Acredito que o exílio mais cruel é aquele que se encontra dentro dos próprios países. Ou seja, dos próprios nacionais/estrangeiros que são impedidos de fruir dos mesmos direitos. São discriminados, colocados à margem. São os “desgarrados da terra”.
Basta olhar as ruas das cidades do Brasil. E não somente do Brasil.
Uma fase da lua?
Todas as fases. Quando nascente, quando crescente, quando decrescente ou minguante. Quando decrescente, a ponta inferior da lua parece se encaixar muito bem como um balanço de criança. A lua cheia é aquela que nos faz mais lunares, mais reflexivos. Na minha poesia, a lua é a última etapa. A lua é onde se pode agarrar quando o corpo parece sair da vida, quando a vida parece sair do corpo.
Um filme que tem poesia no roteiro?
Cinema Paradiso e Lavoura Arcaica.
Seu prato preferido?
Meu prato preferido é francês. Talvez porque tenham sido na França as minhas maiores aventuras e descobertas. É o pato confitado com aspargos. E um bom vinho, claro.
Que livro está lendo?
Atualmente, leio e não leio. Por diversas razões. Mas poderia dizer que leio A bandeja de Salomé, da poeta mineira Adriane Garcia, Tudo é rio, de Carla Madeira. Mas nunca deixo de lado a poesia de García Lorca e de Jorge de Lima, sobretudo em seu livro A invenção de Orfeu. E não posso esquecer de Guimarães Rosa em seu Grande sertão: veredas. Descobri, há pouco, um papel com indicações de leitura de minha tia-mãe que fez sua passagem há muito pouco tempo. Quero retomar, mais uma vez, esta leitura.
Um escritor que faz sua cabeça?
Posso falar três nomes? García Lorca, Jorge de Lima e Rimbaud.
Um poeta que mexe com sua emoção.
Conceição Evaristo.
Você assiste à televisão?
Sim. Especialmente GloboNews, filmes e alguns seriados das plataformas de streaming.
Um país que quer visitar?
Noruega.
Se não estiver lendo ou escrevendo, o que gosta de fazer?
Encontrar os amigos em torno de uma mesa de bar ou em suas casas. E visitar museus e galerias de arte.
Você reza ou tem ritual para se comunicar com o que chamam “mundo invisível”?
Não. O mundo invisível me (nos) habita. Estamos sempre conectados.
Poesia cura as dores do corpo ou é acalanto – alimento – pra alma?
Eu tenho uma visão diferente da poesia. É algo que passa pela antropobiologia filosófica. A arte em geral e a poesia, em especial, é a única maneira de completarmos aquilo que nosso cérebro, nossa razão não consegue perceber do mundo. Nascemos todos com déficit cognitivo. A partir da poesia, é possível compreender as relações consigo mesmo, com os outros e com o próprio mundo. É uma forma de alteridade e empatia com a família humana também. É uma forma de nos conectarmos com aquilo que não tem conceito.
Por que Lucas Guimaraens e não Guimarães?
Sou bisneto do poeta mineiro simbolista Alphonsus de Guimaraens. Filho de portugueses, ele foi batizado como Afonso Henriques da Costa Guimarães. Seu tio era Bernardo Guimarães, autor de A escrava Isaura. Como pseudônimo poético Afonso Henriques da Costa Guimarães mudou o seu nome para Alphonsus de Guimaraens. A partir daí, ele mesmo registrou seus filhos com essa grafia nova latinizada, que foi passada a seus descendentes. Fundador da Academia Mineira de Letras, ela é chamada, desde sempre, Casa de Alphonsus de Guimaraens.