por Marcia Cruz
Zeca Camargo, Lívia Sant’Anna Vaz e Ruth Manus fizeram um bate papo no terceiro dia do 2.º Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu –, no Centro Histórico, abordando a Justiça brasileira, a luta de mulheres negras e a trajetória de Elza Soares.
Lívia iniciou cantando para Iemanjá, orixá mãe de todos os orixás, como forma de pedir bênção. O primeiro livro de Lívia, que é promotora, “A justiça é uma mulher negra” traz na abertura a imagem de Oyá. É o primeiro questionamento sobre a representação clássica da Justiça: uma mulher branca, de olhos vendados, de origem grega. “Se o direito no Brasil é branco, masculino, heterossexual e cristão, a Justiça tem que ser outra”, diz.
Também apresentou o livro infantil “Abayomi”, que traz outras referências para as crianças, em especial as negras. “Nas escolas, as histórias de pessoas negras são contadas a partir da escravidão. Mas nossa história não começa na escravidão”, disse. A África, conforme destacou, é o berço da humanidade, da filosofia e de outros saberes, embora isso não seja ensinado às crianças negras nas escolas brasileiras. Ao contrário, as escolas tornam-se locais onde as crianças negras enfrentam o racismo, às vezes, de forma tão violenta que as levam a reações extremas, como o suicídio de um jovem em uma escola particular em São Paulo.
Lívia pediu a Zeca a biografia de Elza Soares para falar da carreira da dona de uma das mais belas vozes da música. Mesmo ela enfrentou o racismo, que atinge as mulheres negras, muitas vezes impedindo que elas exerçam suas vocações. A promotora, inclusive, escreveu recentemente um artigo com Jamil Chade em que aborda a hipocrisia do Brasil, que festeja as mulheres negras nas Olimpíadas, mas que, no cotidiano, não as valoriza.
Elza perdeu filhos para a fome e, ao longo de quase 90 anos, passou por períodos terríveis. A cantora temia ser esquecida, como destacou Zeca. A artista, em diferentes momentos, enfrentou a fome. Apesar da importância dela para a música brasileira, teve que fazer shows por cachês baixíssimos para sobreviver.
Ruth respondeu à provocação feita por Lívia sobre a Justiça. Para Ruth, a Justiça brasileira está em transformação, devido ao trabalho de pessoas com visão diferente do que é a Justiça e das ferramentas que devem usar. Exemplo que testemunhou em casa, com o pai que foi juiz do trabalho e com a mãe que trabalhava para fazer conciliações nos processos de divórcio. “Cresci numa casa onde o direito estava lá porque servia mesmo. Sou otimista, mas com pé atrás e sempre em alerta.”
Lívia pontuou que a transformação no sistema de justiça é muito lenta e que é preciso que cada um faça uma avaliação no que está contribuindo para mudar esse cenário. Ela lembrou o histórico de luta de mulheres negras, que sempre estiveram empenhadas numa para uma transformação coletiva.
Os escritores revelaram os projetos literários futuros. Zeca e Ruth escrevem o primeiro romance. Lívia pretende escrever sobre a avó Wanda. Ruth recebeu um conselho do guru José Couto Nogueira. Apesar de ela já estar no 11.º livro, escrever um romance é um exercício de humildade. Ela começou a escrever o romance quando estava grávida. Ela leu “Sobre a escrita”, de Stephen King, mas não seguirá o conselho dado por ele de escrever um romance em três meses.
No romance que Ruth está escrevendo, ela abordará o destino de uma mulher branca e uma mulher negra que cometem um crime juntas, mas que respondem a processos judiciais que tramitam de forma totalmente diferente. Ela revelou que usa a aliança de casamento da avó e leu um trecho que explica os motivos de ela ter recebido esse presente. Ruth leu um trecho emocionante da avó.
Ao encerrar, a plateia emocionou-se com o filho bebê de Ruth que se sentou no colo dela no palco, momento que a escritora pontuou que a invisibilidade de crianças é também a invisibilidade das mães. Outro momento sensível foi a leitura do poema “Vozes mulheres”, de Conceição Evaristo, feita por Lívia.
Sobre o Fliparacatu
O 2.º Festival Literário Internacional de Paracatu – Fliparacatu – acontece entre os dias 28 de agosto e 1.º de setembro, com o tema “Amor, Literatura e Diversidade”. A entrada é gratuita para todas as atividades. O Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, e tem o apoio da Prefeitura de Paracatu, Academia Paracatuense de Letras e Fundação Casa de Cultura.