É verdade. Escrevi “Ponciá Vicêncio” e o publiquei, mas eu não gostava do livro. Mas, na medida em que as pessoas iam lendo e falavam comigo, “Nossa, que coisa linda Conceição, como é que você escreveu tal passagem?”, eu pegava o livro e lia a tal passagem e pensava, “Não é que realmente era bonita?”. Foi um livro muito dolorido para escrever. As cenas em que a protagonista apanha do marido, por exemplo, são cenas que eu começava a escrever e tinha de parar e respirar, pois acabo me confundindo muito com a personagem. A dor da personagem acaba sendo a minha dor também. Não sei se isso é bom, se isso é saudável, se a literatura se faz dessa forma… Mas é um pouco de mim mesmo ali. Tem a ver com essas experiências ancestrais e históricas… sou devedora de “Ponciá Vicêncio”.
A escritora mineira Conceição Evaristo é a autora homenageada – ao lado do escritor moçambicano Mia Couto – da primeira edição do Fliparacatu – Festival Literário Internacional de Paracatu. Participando ativamente das ações do festival, Evaristo conversou com o Culturadoria sobre a sua obra, com destaque para o conceito de “escrevivência” – essencial para pensar em sua literatura – e para os livros “Ponciá Vicêncio”, que completa 20 anos, e “Canção para ninar menino grande”, seu mais recente romance.
Como se dá o encontro entre o real e o imaginário na sua literatura? É nessa interseção entre a experiência vivida e a ficção que se dá a escrevivência?
Sim, é na interseção da experiência vivida e da ficcionalização que se dá justamente esse processo criativo. E se dá muito também entre a memória e o esquecimento. Porque eu acho que entre a memória e o esquecimento, nesse espaço intervalar, nesse vazio é que você cria a ficção. A ficção entra justamente para cumprir, para apagar esse vazio.
O ato de lembrar e transpor para as páginas a experiência vivida já seria uma ficcionalização da memória?
Fato concreto: no livro “Becos da memória”, tenho dito que nada que está escrito ali é verdade. Nada que está escrito ali é mentira. É justamente a ficcionalização da memória.
Também em “Ponciá Vicêncio”, o livro traz uma carga da história de escravização dos povos africanos. A nossa memória como um povo diaspórico é constituída de vazios. Eu não sei exatamente, mas fiz um um teste genético em que o meu DNA apontou para uma parte de povos africanos. Mas fica ainda um vazio, não é? Porque o resultado apontou, por exemplo, quinze povos. Como posso chegar nessa certeza? Então, a história dos africanos e da diáspora africana é uma história feita de vazios, de incertezas, de ficcionalização.
A ficcionalização chega justamente para dar consistência, para cobrir esse vazio. A Ana Maria Gonçalves, com o livro “Um defeito de cor”, por exemplo, foi fazer uma pesquisa histórica sobre Luísa Mahin. Mas ela não encontrou nada. Assim, ela ficcionaliza Luísa Mahin e cria aquele belo romance.
Então, há essa tentativa também de se apropriar do real. Que eu sempre tenho dito também. É muito difícil você escrever o vivido. Como vou escrever ou como você vai escrever essa cena de nós dois agora conversando? Por mais que procuremos palavras pra escrever esse encontro, elas não dão conta.
Acho que a ficcionalização é esse esforço de captar o real. E acho que quanto maior for esse esforço, quanto maior for essa impossibilidade, mais bonito fica, mais sedutor fica. Construir uma linguagem para dar conta do real, para dar conta da vida, para dar conta da dor também. E a minha literatura traz muito essa marca da dor: como você vai descrever uma mulher desesperada porque a criança dela morreu de bala perdida? Não tem palavra para dar conta disso. E aí você vai escrever esse real, mas é um real já ficcionalizado. Você não dá conta. O texto não vai captar a dor daquela mulher. Então, a minha literatura é muito esse esforço de captar esse instante de vida, de captar essa vivência e transformá-la num texto escrito.