Conceição Evaristo, Afonso Borges, João Candido Portinari e a pequena Madalena na cerimônia de abertura do I Fliparacatu (Foto: Ranch Films)

A escritora mineira Conceição Evaristo é a autora homenageada – ao lado do escritor moçambicano Mia Couto – da primeira edição do Fliparacatu – Festival Literário Internacional de Paracatu. Participando ativamente das ações do festival, Evaristo conversou com o Culturadoria sobre a sua obra, com destaque para o conceito de “escrevivência” – essencial para pensar em sua literatura – e para os livros “Ponciá Vicêncio”, que completa 20 anos, e “Canção para ninar menino grande”, seu mais recente romance.

Como se dá o encontro entre o real e o imaginário na sua literatura? É nessa interseção entre a experiência vivida e a ficção que se dá a escrevivência?

Sim, é na interseção da experiência vivida e da ficcionalização que se dá justamente esse processo criativo. E se dá muito também entre a memória e o esquecimento. Porque eu acho que entre a memória e o esquecimento, nesse espaço intervalar, nesse vazio é que você cria a ficção. A ficção entra justamente para cumprir, para apagar esse vazio.

O ato de lembrar e transpor para as páginas a experiência vivida já seria uma ficcionalização da memória?

Fato concreto: no livro “Becos da memória”, tenho dito que nada que está escrito ali é verdade. Nada que está escrito ali é mentira. É justamente a ficcionalização da memória.

Também em “Ponciá Vicêncio”, o livro traz uma carga da história de escravização dos povos africanos. A nossa memória como um povo diaspórico é constituída de vazios. Eu não sei exatamente, mas fiz um um teste genético em que o meu DNA apontou para uma parte de povos africanos. Mas fica ainda um vazio, não é? Porque o resultado apontou, por exemplo, quinze povos. Como posso chegar nessa certeza? Então, a história dos africanos e da diáspora africana é uma história feita de vazios, de incertezas, de ficcionalização.

A ficcionalização chega justamente para dar consistência, para cobrir esse vazio. A Ana Maria Gonçalves, com o livro “Um defeito de cor”, por exemplo, foi fazer uma pesquisa histórica sobre Luísa Mahin. Mas ela não encontrou nada. Assim, ela ficcionaliza Luísa Mahin e cria aquele belo romance.

Então, há essa tentativa também de se apropriar do real. Que eu sempre tenho dito também. É muito difícil você escrever o vivido. Como vou escrever ou como você vai escrever essa cena de nós dois agora conversando? Por mais que procuremos palavras pra escrever esse encontro, elas não dão conta.

Acho que a ficcionalização é esse esforço de captar o real. E acho que quanto maior for esse esforço, quanto maior for essa impossibilidade, mais bonito fica, mais sedutor fica. Construir uma linguagem para dar conta do real, para dar conta da vida, para dar conta da dor também. E a minha literatura traz muito essa marca da dor: como você vai descrever uma mulher desesperada porque a criança dela morreu de bala perdida? Não tem palavra para dar conta disso. E aí você vai escrever esse real, mas é um real já ficcionalizado. Você não dá conta. O texto não vai captar a dor daquela mulher. Então, a minha literatura é muito esse esforço de captar esse instante de vida, de captar essa vivência e transformá-la num texto escrito.

Sobre “Canção para ninar menino grande”, o protagonista é uma personagem masculina, Fio Jasmim. É o seu primeiro, não é? Mas ainda assim é pelo olhar feminino que o acessamos, pelas memórias e marcas carregadas ao longos de anos, décadas, por um grupo singular de mulheres.

E esse é o meu grande fracasso, né? O de não ter conseguido criar uma personagem masculina que falasse por si. É um fracasso misturado com remorso. Desde “Ponciá Vicêncio”, o marido de Ponciá não tem nome. No romance todo ele é conhecido como “o marido de Ponciá Vicêncio”. Não consegui dar um nome pra ele, ele não conseguiu se autonomear.“Canção para ninar menino grande” nasce muito também de uma preocupação: não quero fazer uma literatura em que os homens negros sejam algozes, a sociedade brasileira já coloca o homem negro como algoz. Não é preciso uma voz, um texto de uma mulher negra para também colocar esse homem nesse lugar. Como não tenho dado um lugar de protagonismo para esses homens na minha literatura, resolvi partir das minhas relações, dos meus conhecimentos de histórias, de homens da minha família… Pensei em escrever um romance em que esses homens falassem. Também fico muito impressionada, pois nós, mulheres negras, ou nós mulheres, temos a capacidade de contar as nossas dores. Vocês homens falam muito pouco. Não sei se é o teu caso. Mas eu acho que o homem confidencia muito pouco um com o outro. Não é? Só esse fato de que o homem não pode chorar. Que bobeira é essa! Então, quando nós falamos da solidão das mulheres negras, penso muito também na solidão dos homens negros. Assim, eu quis criar o Fio Jasmim e pensei: esse homem vai falar sobre si, sobre tudo. Mas ele não falou nada, são as mulheres que estão descrevendo Fio Jasmim, elas que nos dão a conhecê-lo. Mas acho que elas conseguem captar quem é esse homem.

Vinte anos de “Ponciá Vicêncio”. Como você olha para a sua trajetória de lá pra cá? Hoje você é, acredito, o mais emblemático nome de nossa literatura.

É, “Ponciá Vicêncio” me coloca nesse lugar, pois é o primeiro livro que publico solo, é também a minha primeira obra traduzida – primeiramente para a língua inglesa, mas também para o francês, italiano e outras. Foi a obra que me levou ao Salão do Livro de Paris pela primeira vez. Então, é sim o meu carro-chefe, o trabalho que me colocou na boca do mundo. Olho em retrospecto e vejo realmente que a minha afirmação como escritora conhecida, extrapolando, inclusive, o próprio espaço do movimento negro, foi a partir de “Ponciá Vicêncio”. Então, nesses 20 anos, a minha carreira vem se solidificando a partir dessa obra que, a princípio, foi um livro que eu não gostei…

Como é que pode?

É verdade. Escrevi “Ponciá Vicêncio” e o publiquei, mas eu não gostava do livro. Mas, na medida em que as pessoas iam lendo e falavam comigo, “Nossa, que coisa linda Conceição, como é que você escreveu tal passagem?”, eu pegava o livro e lia a tal  passagem e pensava, “Não é que realmente era bonita?”. Foi um livro muito dolorido para escrever. As cenas em que a protagonista apanha do marido, por exemplo, são cenas que eu começava a escrever e tinha de parar e respirar, pois acabo me confundindo muito com a personagem. A dor da personagem acaba sendo a minha dor também. Não sei se isso é bom, se isso é saudável, se a literatura se faz dessa forma… Mas é um pouco de mim mesmo ali. Tem a ver com essas experiências ancestrais e históricas… sou devedora de “Ponciá Vicêncio”.

*O Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura. O Culturadoria visita o Festival a convite do patrocinador.