Está chegando e não chega nunca
Todo ano eu passava por lá na volta das férias no Rio de Janeiro, para onde eu ia nos dezembros da minha infância. Paracatu era a última parada do ônibus antes de chegar em Brasília. Era importante ir ao banheiro e comer alguma coisa porque, depois, “só em casa”. Era a parte mais longa da viagem, já estava chegando e não chegava nunca. Embora fosse um compromisso anual no meu calendário pessoal, a cidade, para mim, era apenas um nome em uma pacata parada de beira de estrada.
Isso foi antes da mineradora se instalar por lá e mudar drasticamente a paisagem de sossego interiorano de que me lembro. Hoje, um muro verde altíssimo e montanhas impressionantes de rochas acinzentadas são a primeira coisa que vemos ao chegar. É impossível ignorar sua presença, mas não é sobre isso que quero falar.
Eu não sabia que Paracatu tem um lindo centro histórico de arquitetura colonial, não à toa tombado pelo Iphan. Tem praça com coreto, hospitalidade mineira, comida divina e só descobri tudo isso na quarta-feira escaldante de agosto em que cheguei na cidade para participar da Fliparacatu. Deixe-me contar o que vi.
Foi montada na cidade uma estrutura bonita e confortável para atender o público e receber alguns dos nomes mais importantes da literatura nacional. Afonso Borges, o bravo idealizador e idealista que tem levado a literatura e o pensamento brasileiro aos interiores do País, não apenas reuniu o mais contemporâneo e relevante debate que é feito no Brasil hoje, como também realizou uma festa emocionante que deixou marcas afetivas profundas em todos que participaram do encontro.
Precisou de pouquíssimo tempo para que eu esquecesse que estava diante de Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior, Tom Faria, Sérgio Abranches, Mia Couto, Luana Tolentino, João Cândido Portinari, Jamil Chade, Paloma Jorge Amado, Socorro Acioli, Marco Haurelio, Silvana Gontijo, Trudruá Dorrico, para ficar em apenas alguns dos imensos escritores que estavam lá, e me sentir entre amigos fraternos e amigas sororas. Em comum, apenas o essencial. O compromisso com a tecelagem das manhãs, como na poesia de João Cabral de Melo Neto e a alegria que a literatura provoca nas almas que convoca.
Embora tenha sido apenas a primeira edição do Festival, o público fez longas filas e silêncios para participar dos debates em torno da ancestralidade, identidade cultural, o Brasil e o mundo que sonhamos habitar. Em todas as mesas, grupos entusiasmados de crianças e adolescentes ocuparam os bancos conduzidos por suas professoras e professores.
Enquanto eu e Jamil autografávamos nosso livro, uma menina chamada Mariana chorava com seu exemplar nas mãos e nos contou da dificuldade que sente em falar dos seus sentimentos. Por isso, escreve cartas para si mesma e as guarda dentro de livros para a Mariana do futuro encontrar. Chorei com ela, porque a Juliana do passado também escrevia pelo alívio de saber que existiam palavras capazes de dizer do emaranhado de beleza, confusão e dor, “Esse comboio de corda/ Que se chama coração”, como escreveu Fernando Pessoa. Também fui essa menina mais emocionada do que as outras, tentando esconder certa vulnerabilidade que eu supunha denunciada pelas lágrimas. Só bem tarde descobri que, se não é uma força, a emoção é pelo menos minha melhor defesa.
Outra menina, Sâmia, abordou Luana Tolentino no fim de sua apresentação para dizer que também queria escrever e pediu um conselho. Eu estava perto suficiente para filmar a cena e garanto que jamais existiu olhar mais bonito. Admiração, esperança, coragem, desejo, fé no que virá. Valeu ir até Paracatu apenas para escutar a escritora, emocionada, segurar pelos ombros a garotinha que um dia ela também foi e responder apenas “escreva, escreva, escreva”.
Li que Paracatu reúne alguns dos quilombos mais bem estruturados e com as tradições mais bem preservadas do Brasil. Visitei um deles. Vi como Isabel, uma senhora idosa e forte, fincava a enxada na terra para colher o açafrão que ela mesma havia plantado. E depois secava, moía e engarrafava o precioso pó amarelo vendido por apenas 20 reais. Vi como ela usava uma pedra para quebrar os coquinhos doces que cultiva no terreno. Escutei a história do quilombo contada por sua irmã Valdete. Entendi como a comunidade diminuiu drasticamente nos últimos anos, o impacto que a mineradora tem em suas vidas e a ameaça que representa ao seu território. Senti o coração apertado ao entender, sobretudo, a perversidade do colonizador, qualquer colonizador, visto com gratidão quando doa uma geladeira, um forno ou providencia a pintura de uma igreja, católica, para quem tem tão poucos recursos para sobreviver à selva do capital. Alguma caridade aqui e ali, enquanto fazem a terra tremer, secam nascentes e poluem os rios para extrair da terra, onde estão enterrados os ancestrais daquelas mulheres, 25% do ouro produzido no Brasil.
Certa branquitude gosta de fazer caridade e precisa dos carentes para descansar a cabeça cheirosa sobre os travesseiros, educar os filhos, escrever artigos como esse, exercer sua militância e suportar a imagem bem alimentada que vê no espelho depois de passar o dia desviando os olhos do inamissível de nossas sociedades. Nós, os sonsos essenciais, como escreveu Clarice e eu nunca consigo esquecer. E quando lembro, me envergonho, pois também sirvo à manutenção do sistema. Todos somos os sonsos denunciados pela escritora quando deixamos de tratar a violência e a injustiça como emergências. Sempre que toleramos a velocidade quase imperceptível das mudanças que sonhamos e não somos radicais na exigência dos direitos devidos a todos.
Em Paracatu, tínhamos pressa. Por cinco dias, o pensamento, a denúncia, a reflexão e a beleza da língua portuguesa ocuparam a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Livres, construída em 1744 por escravos alforriados que a frequentavam. No altar, Conceição Evaristo disse que “em uma nação que teve uma igreja dos brancos e uma igreja dos pretos e que ainda repete esses lugares identitários em que determinadas identidades ainda são sacrificadas, a cultura tem poder e força para atenuar essas mazelas”. Oxalá! Foi assim que a escritora homenageada abriu o Festival e a igreja para a literatura de mulheres e homens, pessoas pretas e brancas, que se revezaram em uma liturgia de diálogo, troca, afeto e alegria.
É verdade que alguns dos fiéis ao deus terrível imposto pelo colonizador não gostaram. Preferem ver aparelhos culturais engolidos pelos templos, como se tornou comum nas metrópoles brasileiras. Uma mensagem contra a ocupação da igreja pelo festival que circulou por aqueles dias perguntava “e se Jesus voltasse hoje? Teria espaço para ele em Sua própria casa?”. Eu responderia com Quintana “que susto não irão levar essas velhas carolas se Deus existe mesmo…”
Se Jesus encarnasse em Paracatu, teria escutado Lívia Sant’Anna cantar, à capela, que a justiça é uma mulher negra. Teria visto que dos 12 autores mais vendidos no festival, oito são negros. Teria visto uma curadoria brasileira realizar algo muito simples para ser tão raro: devolver aos corpos pretos e femininos seu lugar de dignidade e legítima igualdade, sem o alívio de ser cota, sem excepcionalidade, sem a fórmula 3mulheres+2pretos que costumam aplicar para propagandear inclusão e diversidade.
Jesus ficaria satisfeito. Se chegasse a tempo de participar da cantoria dos autores, leitores e amigos que se reuniam à noite, na praça, em frente a igreja dos pretos para festar, perigava fixar residência em Paracatu. Se desse a sorte de se sentar ao lado da Conceição Evaristo que, depois de horas autografando delicadamente seus livros, tinha alegria para fechar o bar, era capaz de querer se casar.
De volta a Brasília, ao pensar nos futuros semeados e imaginados em Paracatu, sinto o mesmo que sentia quando criança. Está quase chegando e parece que não chega nunca.