Alessandra Roscoe no I Fliparacatu (Foto: Ranch Films)

O Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu) reuniu, de 23 a 27 de agosto, na cidade do sertão mineiro, a 230 quilômetros de Brasília, escritores, leitores e todas as linguagens artísticas para celebrar a arte, a literatura e a ancestralidade.

A Fliparacatu juntou o sagrado e o profano, brancos, pretos, pardos, crianças, jovens, adultos, idosos, escritores, músicos, bailarinos, atores para falar de cultura, racismo, democracia, amor e tudo o que cabe num livro ou numa história contada, que deixa de ser apenas de quem a conta ou escreve para ser partilhada com todos.

O Brasil inteiro, a África e Portugal se encontraram numa festa democrática, no meio da praça, nos casarios e nos templos sagrados da centenária Paracatu. Autores consagrados e estreantes, internacionais, nacionais e locais se irmanaram numa caravana poética e revolucionária para celebrar cultura, pertencimento e, claro, a história que vem sendo vivida, narrada e escrita por tanta gente!

Uma programação extensa e diversa movimentou a cidade, ocupou os espaços públicos e transformou o cotidiano. Transformou também as pessoas. Além dos homenageados – Conceição Evaristo e o moçambicano Mia Couto –, cerca de 70 escritores negros, brancos, indígenas, se apresentaram, lançaram seus livros, participaram de mesas e discussões e deixaram a cidade com a sensação de que algo muito intenso aconteceu naqueles dias.

E aconteceu mesmo! O combate ao racismo, a democracia, os direitos humanos e a liberdade estiveram no centro das discussões. Poesia, infâncias e esperança também.

Estrutura montada com antecedência

O Fliparacatu começou a ser preparado com meses de antecedência pelos curadores Afonso Borges, Sérgio Abranches e Tom Farias. Teve o patrocínio da Kinross, por meio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, e apoio da Prefeitura local e do Projeto Portinari.

Foi montada na praça da Igreja Matriz uma exposição com 42 reproduções de obras de Candido Portinari em painéis de 2 a 3 metros de altura. O recorte para a escolha das pinturas foi a representação de personagens negras ou pardas na obra do pintor.

Em Paracatu, mais de 70 por cento da população é negra. A exposição Portinari Negro foi montada há 4 meses, com apoio do Projeto Portinari, tocado pelo único filho do artista, João Candido Portinari, que esteve durante todo o Festival em Paracatu. E além de transformar a praça num museu a céu aberto, movimentou toda a rede de ensino da cidade com debates, visitas guiadas e concurso de desenhos e redações.

A premiação do concurso foi um dos pontos altos no Fliparacatu. Crianças de 4 a 14 anos, jovens de 15 a 18 de escolas públicas e particulares envolvidos com a arte e a escrita receberam troféus e prêmios em dinheiro, mas ganharam pra valer o encantamento com o universo das letras e das tintas no papel.

Caretagem dos Amaros marca a abertura

Com a força dos instrumentos, da indumentária colorida, do canto e dos passos dançados dos brincantes da Caretagem dos Amaros, foi aberta em clima de celebração a primeira edição do Festival Literário de Paracatu.

A Caretagem, manifestação nascida no Quilombo dos Amaros, um dos cinco que resistem na cidade histórica, percorreu em cortejo as ruas de pedra, acompanhada por escritores, turistas e pela população local, que abraçou o primeiro Fliparacatu como se ele já fizesse parte da tradição, por lá sempre tão reverenciada.

A escritora Conceição Evaristo, uma das homenageadas do evento, seguiu o cortejo e fez, juntamente com o idealizador do Fli, Afonso Borges, a abertura oficial na igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

Todas as mesas e as apresentações do Fliparacatu foram transmitidas ao vivo e estão gravadas no canal do evento, que levou 24 mil pessoas ao interior de Minas.

O futuro é agora

Mesmo depois de encerrada a programação, relatos, conversas e muitos escritos ainda circulam. Tenho acompanhado alguns destes desdobramentos. Estive como convidada do Fliparacatu. Fiz duas apresentações para alunos de Ensino Fundamental. Acompanhei todas as mesas e a caravana de autores, que passou os dias junto e parece sofrer agora de ausência aguda dos afetos partilhados em solo mineiro.

Já recebi mensagens, cartas e até escritos de alunos e professores que estiveram em minhas apresentações. Tenho acompanhado de perto as repercussões positivas de tudo o que se viveu por lá.

Para citar uma só das tantas histórias que me encheram de crença na força de eventos que apostam na arte e nas muitas leituras possíveis para transformar realidades, trago a fala da Laiane, uma estudante de 17 anos que acompanhava a mesa das escritoras indígenas Márcia Kambeba e Trudruá Dorrico narrando ancestralidades.

Laiane falou de preconceito, apagamentos e decolonização ao contar que depois de ouvir sobre Macunaimã, o Deus, criador do universo na mitologia Macuxi, nunca mais vai se conformar com a forma como o anti-herói do modernismo, Macunaíma, segue sendo apresentado, seja no livro de Mário de Andrade, seja no filme de Joaquim Pedro de Andrade.

A menina saiu do salão paroquial da igreja disposta a fazer outras leituras de tudo o que já leu e aprendeu e também do mundo à sua volta. Só por isso já teria valido todo o Fliparacatu.

Ainda estou alimentada de todas as bonitezas que pude vivenciar e de uma esperança: a de que o futuro pode, sim, ser sonhado e realizado coletivamente e com muita arte!

Se depender do idealizador do Fliparacatu, Afonso Borges, que há mais de duas décadas comanda o Sempre um Papo com escritores e realiza também o Fliaraxá e o Flitabira, esse futuro já começou. Segundo ele, “passado o encantamento do Fliparacatu, os sonhos que se realizaram ali devem ser o fermento para outros sonhos.

Estou pensando em fazer um festival em Maputo, com Mia Couto, em itinerar a Exposição Portinari Negro, em viralizar as ideias e starts ditos e reditos nas palestras. O grande desafio quando um festival como este termina é que ele nos remete ao próximo. O futuro é agora! (APR)

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