Ao olhar para a literatura brasileira contemporânea, um dos nomes que se destacam é, sem dúvidas, o de Itamar Vieira Junior. Lançado primeiramente em Portugal – onde recebeu o Prêmio Leya – seu romance de estreia, “Torto arado” (2019), encontrou no Brasil um público múltiplo, diverso e imenso. Numa contagem publicada pelo Estadão em junho, o livro já tinha alcançado 700 mil cópias vendidas no Brasil. E mais dois prêmios importantes acompanham sua trajetória no país natal e no além-mar: o Prêmio Jabuti e o Prêmio Oceanos.
Na literatura de Itamar Vieira Junior, grupos social e historicamente silenciados encontram a própria voz. É a história de comunidades quilombolas e indígenas, por exemplo, histórias de personagens que têm na terra o sustento, a morada e o vínculo que os conecta. Entre os dias 23 e 27 de agosto, a cidade mineira de Paracatu recebeu a primeira edição do festival literário internacional Fliparacatu. Uma das presenças mais celebradas do evento, Itamar Vieira Junior, conversou com a gente sobre as temáticas que perpassam sua obra, como a ancestralidade, as adaptações em andamento para outras mídias e o retorno que tem tido do público com seu romance mais recente, “Salvar o fogo”.
O tema do Fliparacatu é “Arte, Literatura e Ancestralidade”. Como a sua ancestralidade influencia o seu fazer literário?
Primeiro que a gente fala de ancestralidade e parece que é algo novo. Li até um comentário recente em uma matéria de jornal, alguém dizia “Lá vem a galera da ancestralidade”. Achei tão engraçado e ao mesmo tempo curioso, porque acho que é algo que faz parte do nosso cotidiano, da nossa vida desde sempre. Antigamente, claro, nos grupos privilegiados, as pessoas sempre falaram de ancestralidade porque celebravam os sobrenomes que tinham, a posição social, os lugares que ocupavam na sociedade, o legado de gerações de uma família que ocupou espaços de poder e de privilégio. Ou seja, sempre se falou de ancestralidade. E hoje vemos a ancestralidade como algo que é parte da condição e da natureza humana. E aí não falamos mais apenas daqueles que foram privilegiados. A gente está falando de todo mundo. Todos nós temos uma origem, todos nós viemos de um lugar, todos nós temos uma história familiar. Pertencemos a uma linhagem particular, uma linhagem familiar. Então, falar sobre isso é falar um pouco sobre nós mesmos, é falar sobre a história do lugar onde vivemos, é falar sobre esse País também, não é? É narrar esse País, o que para mim é um tema fundamental, pois é a partir dele que nós vamos saber quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir.
Falar de ancestralidade no Brasil, um país que é etnicamente e culturalmente diverso, é muito importante, porque a gente está permitindo que todos aqueles que formam a sociedade brasileira tenham voz e contem suas histórias. Narrem suas histórias. Assim, a gente reconhece a importância dessa diversidade. Numa democracia ninguém é maior que o outro. Ninguém é mais importante que o outro. E falar sobre essas múltiplas ancestralidades é falar sobre a diversidade que nos forma. Que, ainda bem, nos forma. Essa diversidade que nós chamamos de Brasil. Quando a gente volta ao passado para tentar saber quem somos, de onde vem nossa história, no fundo não é um desejo de voltar por simples masoquismo. Seria sadismo, porque a nossa história é uma história dura, uma história violenta. A história que nos forma é uma história de violência. Então, é um exercício necessário para que a gente possa refletir e projetar uma sociedade, um país diferente. Às vezes é duro conhecer as coisas, não é? Não é fácil. Mas a gente quer conhecer para projetar um futuro diferente, um futuro que seja mais democrático, mais acolhedor para todos nós. Não que acolha apenas uma parte da população, mas que seja capaz de acolher a todos.
Como tem sido pra você esse seu reencontro com o público com seu novo livro, “Salvar o fogo”?
Tem sido muito bom. Acho que o público acolheu essa nova história da maneira como “Torto arado” foi acolhido. Então, claro, cria-se uma expectativa, eles querem ler novas histórias do autor. Tenho aproveitado esse momento, pois “Torto arado” aconteceu durante a pandemia, então não pude estar em muitos lugares, porque tinha uma restrição de circulação. Os eventos foram quase todos virtuais. Agora, pouco mais de um ano pra cá, a gente tem retomado todos esses festivais que estavam suspensos e tem sido uma oportunidade de encontrar aquele leitor que leu meu romance anterior e ainda não pôde me ouvir, não pôde me conhecer. E eles estão fazendo isso com relação ao meu novo romance. Por todos os lugares onde tenho passado a acolhida tem sido muito boa. E é muito importante, além de encontrar os leitores, poder percorrer o País. Tenho feito viagens para o exterior também, por conta das traduções que estão sendo feitas. Pelas apresentações, pelos lançamentos, aproveito para conhecer esse nosso país, passar por lugares que nunca tinha estado. Como é o caso de Paracatu. É a minha primeira vez nessa região e isso é muito importante.
Como vê sua obra sendo adaptada para outras mídias e suportes. No teatro, a grande Christiane Jatahy desenvolveu o espetáculo “Depois do silêncio”; seu texto é base e dá nome para a música “Torto arado”, do Rubel. Há outros projetos de adaptação em vista?
Tenho acompanhado, mas não participo diretamente dessas adaptações. Os criadores geralmente me procuram, querem minha opinião sobre o nível de liberdade que eles têm para adaptar essa história. Mas tem sido muito interessante a quantidade de mídias. Temos uma canção, uma peça de teatro e, ainda, uma série televisiva sendo produzida. Vou acompanhando na medida do possível, sem me envolver diretamente, porque, senão, eu teria que sacrificar o tempo da escrita ou o tempo em que estou com os leitores. Mas gosto desse trabalho da adaptação, pois há nele uma interpretação. É sempre um olhar, cada leitura desse livro é uma leitura diferente. Sempre me perguntam sobre minhas personagens, sobre a história. Há coisas que falo honestamente para o leitor, que não sei responder, porque não refleti sobre aquilo enquanto escrevia. Assim, ele me fala sobre o que pensa e aquilo me faz refletir também sobre a história. Acho que a leitura é essa engrenagem, sabe? Que envolve autor e leitor. Não existe narrativa e história sem leitor, é ele que interpreta, é ele que dá vida àquela história. Personagens, eventos, tudo aquilo se estrutura na mente do leitor e ele projeta. Então ele é peça fundamental nessa interpretação da história. Com as adaptações não é diferente, a Christiane Jatahy leu o livro de uma maneira. Ela fez a adaptação que achou que era aquela que dava conta da história, era aquela que tinha significado pra ela e acho isso maravilhoso. Pude assistir à peça no ano passado na estreia na Áustria. Lá, participei de uma mesa com a Christiane e falamos sobre nosso processo criativo. Tenho um novo encontro com ela no próximo mês, quando o espetáculo passar por Madrid. Para mim, é uma honra tê-la adaptando a minha história. Uma encenadora premiada na Bienal de Veneza se interessar por essa história e levá-la ao palco… Essa história não pertence mais ao Brasil, ela está atravessando o mundo. Já passou por dez países. A peça ainda tem uma extensa agenda para cumprir nos próximos dois anos. Já sobre a música, é algo parecido. Foi uma iniciativa do próprio Rubel. Ele leu a história, se sentiu tocado, quis compor e compilou ali no tempo de uma canção – que é um tempo bastante curto – o que ele compreendia daquela história. Acho que ficou sensacional porque tem alma, tem vida. Ele ainda convidou duas artistas importantes para cantar com ele, a Luedji Luna e a Liniker. Ficou bem especial. Fiquei bem emocionado tanto pela peça da Christiane Jatahy quanto pela música do Rubel. Eles me tocaram pela sensibilidade que carregam.
O que podemos esperar da terceira parte da sua trilogia acerca das questões da terra?
Acho que o fluxo dessa história é como o rio, é natural, é como o rio Paraguaçu: ele nasce na Chapada Diamantina, que é onde está o primeiro livro, atravessa e vai desembocar na Bahia de Todos os Santos. Então, aguarde! Tem uma história por vir. Mas não sei quando chega…
* O Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura. O jornalista visitou o Festival a convite do patrocinador. A foto que abre o texto é de Gui Garcia / Divulgação.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.