Esta matéria é de autoria da escritora Igiaba Scego, publicado originalmente no jornal italiano La Stampa – clique aqui para ler publicação original, em italiano.

Literatura ao ar livre no país em transição que não para de “escreviver”

O despertador do meu celular me avisa que tenho pouco tempo para tomar café da manhã. O carro que me pegou e me levará depois de uma viagem de três horas até o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, deve sair às seis horas para não ficar preso no trânsito de caminhões. Parto de Araraquara, uma pequena cidade no estado de São Paulo, conhecida por seu animado campus universitário. Eu respiro profundamente. Não gosto de longas viagens de carro, como um bom afro-europeu prefiro trens, mas assim como nos Estados Unidos, o Brasil também tem poucos trens. A falta de infraestrutura ferroviária imediatamente chama a atenção. É por isso que as ruas estão cheias de caminhões.

De Araraquara a Paracatu, em Minas Gerais, para onde vou, a viagem coloca você à prova. Três horas de carro para chegar a São Paulo, duas horas e meia de avião para chegar à capital Brasília, outras três horas de carro para atravessar o Estado de Goiás e chegar ao seu destino, em Paracatu. São muitos quilômetros, mas afinal eu fiz cócegas em um país que sozinho é um continente inteiro. Paracatu, meu destino, vem depois de outras cidades, para onde trouxe meus escritos: Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas. E algumas coisas, esta é minha quarta viagem ao Brasil, ficam claras para mim de etapa em etapa.

O Brasil está em plena transição. Ele é um gigante ferido pela pandemia e pelos anos Bolsonaro. Um Brasil que, apesar de encontrar seu presidente simbólico, Lula, não consegue enxergar inteiramente como será seu futuro. A inflação está galopando, as mudanças climáticas também estão acontecendo (percebo isso no carro, os goianos estão todos queimados e as vacas estão pastando na fome), os recursos estão sempre em perigo, apesar das lutas (principalmente dos indígenas), e a preocupação de muitos é “quem vai substituir Lula quando ele se aposentar?”. O distanciamento do pai da aldeia, amado por alguns e odiado por outros, é algo “que mete medo” que assusta. E você pode sentir esse medo nas palavras de meninas e meninos que fazem discursos que você pensaria que só ouviria em Roma ou Milão: “Não tenho vontade de ter filhos”, M. “Mal consigo cuidar de mim mesmo. Mas você viu os preços no supermercado?” E depois há o racismo. É feroz, mata. Basta ler o livro de Jefferson Tenório “O Reverso da Pele” (Mondadori) ou um dos contos de Conceição Evaristo em “Occhi di Acqua” (De cabeça para baixo), para entender que não é preciso nada para acabar mal. E depois há aquele olhar no teu corpo que vem de longe, da escravidão, que quando te pousa em ti te devasta.

Experimentei em um restaurante no Rio de Janeiro, um restaurante inteiro que não parava de me olhar, uma pergunta cruel nos olhos deles, por que essa negra de turbante (eu) quer ser servida, comer como a gente e não ser escrava das nossas mesas? O pecado mortal era exigir outro papel para o corpo. “Como você aguenta?”, pergunto a Lívia Sant’Anna Vaz, jurista brasileira, autora de “A Justiça è uma mulher negra”. “Vocês, afrodescendentes, são 50% do país, porque eles os tratam como minoria? Como você sobrevive?” “Vamos lutar”, responde Lívia, que tem se aproximado das religiões de matriz africana que, afinal, explica, “ajudam as pessoas a pegar o fio da meada de gerações separadas pela escravidão”.

O senhor dividiu a mãe do filho, o pai de seus entes queridos, e agora com a arte, a religião, resistindo nos quilombos, seguindo os passos dos que fugiram da plantação, as antigas relações são refeitas. E assim o Brasil, se por um lado vive problemas endêmicos, por outro tem uma energia, de parte do seu próprio povo, que o empurra para o futuro. Sua literatura é essencial para entender o quanto o país mudou, e Paracatu, por uma semana, se torna o centro dessa mudança.

A cidade é conhecida por ter uma das maiores minas a céu aberto do mundo, que no entanto não é propriedade do país, mas, e aqui está o paradoxo novamente, de uma multinacional canadense. Os organizadores do FlipParacatu (o festival literário) Afonso Borges, Tom Farias, Sérgio Abranches, escolheram esta cidade para levar a literatura a um lugar onde ela nunca vai. Em uma cidade mineira. Envolvendo estados vizinhos, e trazendo para lá os maiores nomes da literatura do país. E tem sido visto a olho nu o quanto o mercado editorial brasileiro hoje é composto por inúmeras minorias, que não são minorias em número. Todos presentes na festa, na tenda ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Um dos principais nomes foi o de Itamar Viera Jr, autor que com seu “Twisted Plough” (originalmente publicado pela pequena editora Tuga na Itália e agora procurando uma editora) não estava apenas entre os livros mais vendidos (de todos os tempos) no país e com mais traduções, mas que por um bigode quase agarrou o preço do Booker internacional. Suas protagonistas, Bibiana e Belonísia, camponesas da terra dura do Recôncavo Baiano, entraram no coração da aldeia. Há também a rainha das letras negras brasileiras Conceição Evaristo, que recebeu a honra de Cavaleiro das Artes e Letras da França em Paracatu. Quando o público a vê aparecer, com seus cabelos brancos cremosos, há quase um desejo de ficar de joelhos. Não é apenas uma pessoa, Simone Paulino, minha editora (Nos), sussurra para mim, é uma entidade, um orixás vivo. Em suma, uma divindade. Mas uma divindade na mão. Que te abraça, te beija, te ouve. Quem caminha com você. Quem, para conseguir publicar livros, fez um longo aprendizado, enquanto tinha que trabalhar duro para sobreviver. Seu rosto parece o de uma criança, seu cabelo afro natural lhe dá uma aura mística, mas então um sorriso zombeteiro aparece, o que a torna familiar para nós. Com sua escrita, Evaristo tenta resolver os males sofridos por seus antepassados no passado, mas também os de seu povo no presente, desde estupros até balas voadoras nos subúrbios que sempre atingem uma pessoa racializada no rosto, muitas vezes meninos e meninas, como Agatha Felix, de 9 anos, que morreu no Rio de Janeiro, na frente de sua casa.

Há o filósofo Ailton Krenak que nos lembra que o mundo está à beira de um colapso nervoso porque não sabe mais falar com a natureza, mas apenas extrair. Há Trudruà Dorrico, que luta pelo direito de seu povo, os Makuxi, de retomar sua cultura, a começar pelo nome original, que ainda não pode ser escrito no passaporte brasileiro. Mas é depois do festival que o incrível acontece. Escritores que estiveram ocupados no palco começam a tocar. Alguns tiram as flautas, alguns o violão, alguns a percussão e o berimbau. E eles começam a cantar, desde os clássicos da Bossa Nova até os últimos sucessos. Enquanto isso, as pessoas compram livros, recitam poemas, falam sobre literatura, incluindo literatura italiana. Todos os livreiros me apontaram seu grande amor por Il Colibri de Sandro Veronesi, um sucesso de crítica e público, ou a devoção a Os Anos Abençoados do Castigo de Fleur Jaeggy e o interesse pela figura de Chiara Valerio, que no Brasil assinou com Emanuele Trevi o prefácio da Fondamenta degli Incuráveis de Iosif Brodskij (Âyiné). Algumas de nossas escritoras mais conhecidas, Lisa Ginzburg e Ilaria Gaspari, não surpreendentemente, foram convidadas para a Flip em Paraty, a mais importante do país. E mesmo em Paracatu a presença italiana foi notável.

Tiro uma palavra de Paracatu, escrevivência – que hoje finalmente tem uma tradução italiana, escrivivere, que você encontra no livro Vozes Amefricanas. Contextos, textos e conceitos do Brasil (De cabeça para baixo) – ou escrever a experiência vivendo. Vidas negras, vidas racializadas, vidas de mulheres que o poder tenta marginalizar sem felizmente ter sucesso. Eu também abraço todas as pessoas ao meu redor. Um abraço aquilombado, anti-racista. Ao abraçar a cidade, ouço de longe a voz baiana de Luedji Luna, de sua música Banho de folhas, que diz que é um orixá que nos guia. A minha, a deusa guerreira Iansã, me levou a um país que nunca para de sonhar.