O segundo dia do Festival Literário Internacional de Paracatu, o Fliparacatu, foi marcado por uma diversidade de atividades culturais, que atraíram o público de todas as idades e interesses, e também pelo disputado bate-papo entre a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), e a jornalista e escritora Miriam Leitão. A presença da dupla no evento gerou expectativas. Tanto que, cerca de uma hora antes da atividade, programada para às 20h, uma longa fila já se formava na Casa Pastoral – um dos espaços dedicados ao evento graças ao apoio da Diocese de Paracatu.
Quando chegaram, a ministra e a jornalista e escritora foram recepcionadas por um grupo de alunos da Escola Família Agrícola de Natalândia, que as presentearam com um chapéu. Em seguida, já no palco, Cármen Lúcia e Miriam Leitão falaram, para um auditório lotado, sobre a liberdade que a leitura e a literatura promovem.
Ao iniciar a apresentação, que se revelaria rica em anedotas e referências literárias, a magistrada, nascida em Espinosa, cidade próxima a Montes Claros, lembrou de quando, em uma visita a pessoas apenadas feita há cerca de 15 dias, ouviu de um recuperando que ele concordava com o que Paulo, que ele jurava ser um amigo da ministra, dizia em seus livros. “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”, era o pensamento em questão, explicou o interlocutor, quando Cármen Lúcia entendeu que, na verdade, aquele homem se referia a Paulo Freire (1921-1997), Patrono da educação brasileira.
Ainda em suas falas iniciais, a ministra – que recitou trechos de “Romance das palavras aéreas”, de Cecília Meirelles – fez uma série de reflexões sobre o silenciamento histórico das mulheres e sobre como as palavras são instrumentos de poder. “A mesma palavra que pode ser uma declaração de amor pode ser uma declaração de guerra, por isso o uso da palavra não é vão”, avaliou. Em outro momento, lembrou que o autoritarismo cerceia a liberdade e por isso cerceia as palavras. “Por isso, somos de uma geração que lutou muito para ter o direito falar. Nós não gostamos de mordaça”, concluiu, citando a prisão de Miriam Leitão, aos 19 anos, durante o regime militar brasileiro. Antes de passar a palavra à colega, ela mencionou nutrir o sonho de que exista uma biblioteca em cada cidade com menos de 50 mil habitantes do norte de Minas, de onde ela vem.
Por sua vez, Miriam Leitão começou sua apresentação relembrando um trabalho de reportagem realizado por ela para o “Jornal Nacional”, da Rede Globo, em que, em uma entrevista com uma mulher canavieira, ouviu o que julga ser a melhor definição do analfabetismo: “Quem não sabe ler é cedo no entendimento”, teria dito a entrevistada. Assim como Cármen Lúcia, ela citou, no decurso de suas falas, questões relativas ao machismo e patriarcalismo, citando, inclusive, reflexões da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908- 1986).
Em seguida, sensivelmente emocionada, a escritora falou de sua irmã mais velha, Beth. “Ela foi minha guia na literatura. Em Caratinga, onde nasci em uma casa de 12 irmãos, ela era a declamadora da cidade. E mesmo antes de saber ler, sem nem sequer entender o que estava ouvindo, eu já me emocionava só de ouvi-la”, disse. “Foi ela também que me apresentava aos autores, que me mostrava as diferentes fases de cada um”, prosseguiu, informando que hoje a irmã está internada lutando pela própria vida. Nem por isso abandonou o hábito da leitura, por meio do qual parece conseguir se libertar de tal acometimento. Foi por meio desse gatilho que Miriam Leitão, já com olhos marejados, falou do período em que foi torturada e mantida em cárcere por agentes da ditadura militar. “Para mim, uma das piores coisas era que, lá, eu não podia ler. Então, eu passava o tempo relendo, mentalmente, as obras que havia lido antes. Nesses momentos, eu era livre, mesmo dentro da prisão”, arrematou.
Outros debates
Mais cedo, dando largada à programação do segundo dia do evento, o jornalista e escritor Jamil Chade e José-Manuel Diogo, fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos, participaram de um debate, às 10h, com o tema cidadania da língua e lusofonia.
Em seguida, as escritoras Taiasmin Ohnmacht e Calila das Mercês falaram sobre a relação entre memória e escrita, compartilhando suas experiências pessoais e profissionais como autoras. Elas destacaram a importância de resgatar as histórias de vida, as tradições e as identidades através da literatura nessa conversa que contou com mediação de Tom Farias, um dos curadores da Fliparacatu.
O programa desta quinta-feira (24) continuou com mais mesas de bate-papo, que abordaram temas variados, como a história da literatura no Brasil, as realidades periféricas e o romance. Entre os convidados, estavam nomes como Paloma Jorge Amado, filha do escritor Jorge Amado, Nádia Gotlib, biógrafa de Clarice Lispector, Tom Farias, autor da biografia de Carolina Maria de Jesus, e Socorro Acioli, jornalista e escritora.
Além dos debates, o público também pôde dialogar com o Grupo de Dança Primeiro Ato, que realizou uma roda de conversa, que contou com a adesão de um significativo grupo de estudantes, sobre sua trajetória artística e uma oficina sobre sua linguagem na dança contemporânea brasileira. O grupo é reconhecido nacional e internacionalmente por sua qualidade técnica e expressiva.
Mais atividades
Na programação regional, que também teve início às 10h, aconteceram três mesas de bate-papo com autores locais e regionais. Eles discutiram sobre a literatura como instrumento de preservação da história local, a importância da valorização do patrimônio histórico, a ancestralidade negra na cidade de Paracatu e o racismo – temas relevantes para a compreensão da cultura e da sociedade paracatuense, um dos municípios mineiros com maior número de quilombolas.
O Fliparacatu também ofereceu atividades voltadas para o público infantil, como contação de histórias, oficinas de ilustração e lançamentos de livros. As crianças se divertiram com as narrativas lúdicas e criativas dos autores convidados.
Com objetivo de promover a literatura, a arte e a cidadania a partir de uma série de atividades gratuitas que tomam o centro da cidade histórica localizada na região moroeste de Minas Gerais, o Fliparacatu segue até domingo (27). A programação completa pode ser conferida no site oficial do evento.
*O repórter viajou a convite da Kinross, patrocinadora do Fliparacatu por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura.