Conceição Evaristo e Afonso Borges na cerimônia de abertura do I Fliparacatu (Foto: Ranch Films)

Uma das homenageadas do Festival Literário Internacional de Paracatu, o Fliparacatu, Conceição Evaristo – cuja obra perpassa gêneros como a poesia, o romance, o conto e o ensaio – planeja lançar, no futuro, uma antologia crítica da autoria negra contemporânea. A revelação aconteceu durante entrevista concedida pela renomada escritora a O TEMPO. Vale registrar: o tema da pesquisa é caro à escritora belo-horizontina, que, agora aposentada, possui uma prolífica carreira como pesquisadora-docente universitária.

Conceição Evaristo está em Paracatu, na região noroeste de Minas, desde quarta-feira (23), quando foi dada largada à programação do Festival, que se estende até domingo (27), com uma série de atividades gratuitas que ocupam o Centro Histórico da cidade, celebrando a arte, a literatura e a ancestralidade. Na tarde de sexta-feira (25), integrando a programação nacional do evento, ela fará a leitura pública do conto “Olhos d’água”, publicado originalmente em 2014, em um livro homônimo.

Durante a conversa com a reportagem, ela, que é uma das principais vozes da literatura brasileira, falou também sobre a suas motivações para participar do evento. Para participar das atividades, ela, que atualmente vive em Maricá, no Rio de Janeiro, precisou percorrer aproximadamente 2.300 km. A razão de, aos 76 anos, ter encarado tanta estrada reside no seu autêntico interesse em conhecer a população negra e quilombola de Paracatu. “Essa já foi uma das principais motivações. Fiquei pensando muito nesse trânsito pela cidade, no trânsito com a escola. Acho que um evento como este é muito significativo para as crianças, para os jovens”, explicou.

Ovacionada até durante um discurso feito de improviso, a escritora também abordou a maneira como foi acolhida pelo município, que possui a maior população quilombola do Triângulo, Alto Paranaíba e Noroeste de Minas, e é a 10ª no ranking em todo o estado. Ela ainda expôs sua percepção sobre a população negra e quilombola e a necessidade de efetiva democratização da cultura. Foi quando, ao fim da entrevista, Conceição Evaristo revelou que tem um projeto de fazer uma antologia crítica da autoria negra contemporânea – “porque há muita potência na criação literária de meninas e meninos negros hoje”, garante.

Leia a íntegra da entrevista com a escritora Conceição Evaristo:

1. Como você recebeu o convite para a Fliparacatu e o que te motivou a participar do evento?

Quando o Afonso Borges (um dos curadores e organizadores do festival) me convidou, até por saber que a minha agenda é muito cheia e nem sempre eu posso atender aos convites, ele já usou uma espécie de chamariz, já trouxe em seu convite o que foi para mim uma grande motivação, que foi dizer que era uma cidade em que havia uma população negra e quilombola. Fiquei pensando muito nesse trânsito pela cidade, no trânsito com a escola. E acho que um evento como este é muito significativo para as crianças, para os jovens. Então juntaram as duas coisas. Afinal, sei que em comunidades quilombolas, cidades do interior, é muito raro esse acesso direto com escritores, com a literatura e com os produtos de arte em geral. Isso foi importante para que eu decidisse vir.

2. Como tem sido a sua recepção na cidade?

Chegando aqui, eu fui recebida com muito carinho. Olha, tenho dado sorte. Normalmente, nos lugares que chego, tenho um acolhimento muito bom, como foi por aqui. E essa receptividade vem tanto do pessoal da cidade quanto de outros escritores. Alguns eu conhecia do grupo ‘Literatura e Liberdade’, coordenado pelo próprio Afonso Borges. Mas, mesmo entre essas pessoas, algumas eu conhecia só por internet, mas nunca tinha visto pessoalmente. Então, esse acolhimento me deixou muito à vontade. A cidade também me deixou muito à vontade. Hoje, por exemplo, nós já fomos visitar um quilombo, já fomos visitar também a Casa de Cultura e fiquei feliz ao perceber que, em Paracatu, pessoas negras estão em cargos importantes. Mas me causa também um certo estranhamento de, em uma cidade com 80% da população negra, ainda não ter percebida essa maioria circulando no evento – um fenômeno que diz muito sobre as dinâmicas raciais no Brasil. Neste País, há lugares, mesmo em capitais como o Rio de Janeiro, específicos de uma população branca, específicos de uma população negra. E é fundamental estarmos atentos a esse tipo de comportamento social, ele tem significado para a luta antirracista ao demonstrar que produtos culturais ainda precisam ser democratizados, que precisamos de políticas públicas e de um entendimento de que, se a cultura se pretende democrática, então todo tipo de cultura tem que ser usufruída por todas as pessoas da nossa cidade.

3. Como você vê o cenário atual da literatura negra no Brasil?

Acho que, depois de uma longa luta, temos visto mais essa autoria negra sendo publicada. Há 20 anos, por exemplo, essas publicações dependiam muito de iniciativas pessoais. Vide o meu romance ‘Ponciá Vicêncio’ , que está completando 20 anos. Para publicar esse romance, foi preciso que eu pagasse a uma editora negra de BH, a Mazza Edições, que não tinha margem para bancar esse projeto. Hoje, percebemos haver uma procura maior, sendo que as editoras negras, criadas justamente por essa perspectiva de publicar essa autoria negra, têm protagonismo nesse processo. Mas, além delas, gradualmente, vamos ganhando espaço também no mercado livreiro e em editoras maiores. Hoje, a Companhia das Letras publica Carolina Maria de Jesus, João de Camargo, Eliana Alves Cruz e outros autores e autoras negras. Esse movimento, sem sombra de dúvida, decorre também da Lei que obriga a incorporação das culturas africanas e indígenas no ensino médio, criando uma demanda por esse tipo de conteúdo. Por fim, há ainda outro elemento: a visibilidade que o nosso trabalho vai ganhando ao ganharmos prêmios literários e participarmos de eventos como este, que nos traz legitimidade perante um certo público.

4. E o que Conceição Evaristo tem lido atualmente?

Tenho procurado muito essa autoria negra, que é uma autoria que eu desconhecia. Já faz um tempo que me interesso por esses autores e autoras, talvez desde o meu mestrado ou doutorado, ou talvez já fosse assim antes. Antes, os cursos de Letras, normalmente, não traziam esses autores, exceto, claro, aqueles que já eram canônicos, como Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa. Foram apenas estes os autores negros que vi na minha graduação. Depois fui tomando conhecimento de outras autorias, que conheci no movimento social, em conversas, citações e eventos. Foi assim que conheci, por exemplo, a poesia de Solano Trindade e Maria Firmino dos Reis, que escreveu o primeiro romance brasileiro. Além dos brasileiros, leio também os autores africanos que escrevem em língua portuguesa, principalmente mulheres, assim como leio mulheres afro-americanas. Hoje, até devido à pesquisa que realizo, tenho me concentrado nessa autoria afrodiaspórica. Assisti agora há pouco à mesa com as autoras Calila das Mercês e Taiasmin Ohnmacht. A primeira eu já conhecia. A segunda vou conhecer agora. É assim que vou garimpando minhas leituras. E isso me leva a um projeto que quero desenvolver no futuro: fazer uma antologia crítica dessa autoria negra contemporânea, porque há muita criação de meninas e meninos (falo assim porque todos têm idades para serem meus filhos) muito potente!

*O repórter viajou a convite da Kinross, patrocinadora do Fliparacatu por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura.

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