UOL – 3/9/2023 – Jamil Chade

 

Carta para a ministra Margareth Menezes: ouse uma revolução

 

Numa das principais praças de Paracatu-MG, na semana passada, os quadros de Candido Portinari eram expostos como um convite para que uma nação ousasse se olhar no espelho.

 

Ao nos retratar, Portinari mostrou ao mundo quem somos. Mas também nos chamou a lidar com nossos desafios. Décadas depois de sua morte, em 1962, uma ala da sociedade ainda prefere alimentar uma cegueira deliberada e criminosa sobre nossas incoerências.

 

Ali, naquela cidade, ocorria o Festival Literário Internacional de Paracatu. Não era apenas uma programação cultural. Como um mestre de uma olaria artesanal, seu organizador Afonso Borges fazia parte de um elenco de homens e mulheres que, por todo o País, atuam de forma incansável na construção de uma obra imponente e que jamais será concluída chamada “democracia”.

 

Seus instrumentos? Imagens, palestras e livros que lutam pela superação da opressão que ainda sufoca milhões de brasileiros, pela promoção da diversidade de uma nação em sua formação e pela urgente necessidade de reconhecimento da dignidade de homens e mulheres invisíveis para muitos.

 

O próprio pintor certa vez disse: “É preciso haver uma mudança. O homem merece uma existência mais digna. Minha arma é a pintura.”

 

Escrevo, ministra, para dar um depoimento do que vi: a transformação da cultura, literatura e da arte em verdadeiras trincheiras de defesa avançada da democracia.

 

Sim, a cultura e a arte como armas. E, por isso mesmo, temidas por grupos reacionários e ditadores de plantão diante de seu poder libertador e revolucionário.

 

Não por acaso, vimos na pequena cidade mineira o protesto de bolsonaristas que não queriam que as igrejas fossem usadas para debater literatura ou para acolher a arte.

 

Confesso que não me surpreendeu.

 

A história é repleta de casos de regimes autoritários que enxergam a cultura, arte e literatura como ameaças. Sequestram essas armas para transformá-las, quando podem, em instrumentos de manipulação.

 

Ao longo dos séculos, a queima de livros não apenas impediu que uma população tivesse acesso a certos escritores. Sua fumaça asfixiava a própria liberdade daquela comunidade.

 

Soviéticos e os rincões mais reacionários do interior dos EUA de fato se encontravam num ponto em comum: a tentativa de resistir ao rock e sua insurreição promovida na mente de tantos jovens.

 

Do Khmer Rouge aos nazistas, passando pelos chineses ou o Talebã, o controle da arte e da cultura foi um esforço deliberado de controle das consciências.

 

Portinari sabia muito bem o que isso significou. No Brasil, os arquivos da polícia revelam como ele era monitorado e temido. Foi investigado por sua participação em movimentos pela paz, considerados como fachadas para um suposto plano comunista.

 

Um homem que propunha que a saudação de “bom dia” fosse substituída por “democracia”, de fato, era alguém a ser temido.

 

Como resultado, foi impedido de receber prêmios no exterior e teve seu visto negado pelos americanos, até mesmo para a inauguração de seu mural Guerra e Paz, na sede da ONU.

 

Em Paracatu, porém, nem os protestos, nem o controle da economia da cidade por segmentos bolsonaristas pareciam intimidar aqueles que optaram por formar longas filas numa livraria improvisada em uma de suas praças.

 

Eram pessoas ávidas para ter em suas mãos os livros de Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior ou Eliana Alves Cruz. Eram pessoas ávidas por cidadania, talvez uma outra camada daquilo que o escritor Jeferson Tenório chama de “literatura como um direito humano”. “O ato mais transgressor que eu fiz na minha vida foi me tornar leitor”, disse, em recente entrevista.

 

Aquelas longas filas eram o espelho da consolidação de autores negros, que estão declarando solenemente em cada linha de suas obras: a era da história única acabou.

 

Naquelas longas filas estava a resposta a longos anos de uma tentativa de sufocar a cultura no Brasil.

 

Naquelas longas filas estava uma atitude desafiadora, como as personagens dos quadros de Portinari. O Brasil é aquilo que ele retratou. Retirantes miseráveis e oprimidos. Mas também fortes, dignos, sólidos como árvores, dispostos a cantar a liberdade e elegantes como seu flautista.

 

A cultura e a arte são elementos que nos definem como humanos.

 

Mas também precisamos da arte como antídoto ao autoritarismo, contra a desinformação, contra o ódio e contra a manipulação.

 

Em Paracatu, e diante dos quadros do pintor, ficou evidenciado que o resgate da cultura não é um luxo. Ele faz parte da construção da democracia, da resistência contra qualquer tipo de opressão e da reinvenção do futuro.

 

Ou como escreveu Luana Tolentino, literatura é vida, um direito inegociável.

 

Em suas mãos, ministra, está também a alma de um país.

 

Ouse uma revolução.

 

Saudações democráticas,

 

Jamil