Mia Couto e Itamar Vieira Junior conversam em momento de descontração_ dupla de autores promoveu o debate Conversa para desentortar arados (Foto: Ranch Films)

Paracatu (MG) – Criador do estrondoso “Torto arado”, com 700 mil cópias vendidas e vencedor do Prêmio Jabuti, Itamar Vieira Junior afirmou nesta sexta-feira (25/8) que a popularidade do livro mostra a vontade da população em se enxergar na literatura. Vieira Junior deu uma entrevista à coluna durante o Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu).

O escritor baiano de 44 anos impactou público e crítica em seu romance de estreia, em que se revela a imagem de um Brasil rural e negro. Em abril, lançou “Salvar o fogo”, que define como a segunda parte do ciclo aberto com “Torto arado”.

“Temos vivido uma revolução, vejo o Brasil mais representado. O acolhimento do público mostra que isso não é um desejo só meu, ou de alguns, mas de boa parte da população de se conhecer por meio das histórias”, disse o autor, emendando: “A literatura alarga nossa humanidade”.

Fliparacatu vai até o próximo domingo (27/8), no Centro Histórico de Paracatu, com ingressos gratuitos e transmissão pelo YouTube. O evento é patrocinado pela Kinross por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura.

Eis os principais trechos da entrevista:

A abertura de “Torto arado” deixa o leitor com um gosto metálico de sangue na boca. Qual é a importância dos começos das narrativas?

Quando comecei a escrever “Torto arado”, o livro não começava daquele ponto, mas de um episódio que acontece no meio do romance, e dali escrevi umas 50 páginas. Depois percebi que eu precisava voltar no tempo para contar uma parte importante da história. Foi aí que surgiu o início do livro, que é a história das duas irmãs crianças quando acontece um acidente que vai deixar uma delas sem voz. O começo é importante, porque é ali que estamos convidando o leitor para atravessar um tempo razoável conosco. Como se a gente precisasse pegá-lo pela mão e dizer “vamos juntos”. Vivemos um mundo de muitas distrações e escrever também é uma arte de convidar os possíveis leitores.

Então a história começava com Bibiana e Belonísia adultas?

Sim, eu não tinha planejado. E acho isso sensacional. Enquanto leitores, nós autores esperamos que um livro nos entregue surpresas e engajamento. A gente leva essa experiência para a escrita.

Que conselho daria para jovens que dizem não gostar de ler?

É um tema delicado. Compreendo alguns jovens quando dizem que ainda não despertaram para a leitura. Prefiro acreditar que é porque não foram apresentados àquilo que precisam ler, a uma literatura que faz sentido para sua existência. E não necessariamente precisa ser uma literatura sacramentada pelo público ou pela crítica. Às vezes é pela relação pessoal. Quando isso acontece, é impossível não se entregar. Ler é sempre se colocar no lugar do outro. Quando lemos uma história, vivemos a vida das personagens. As fronteiras são rompidas entre pessoas, gêneros, raças, etnias e nacionalidades. Acredito que a literatura alarga nossa humanidade. Eu me tornei leitor no seio de uma família de classe média baixa, pobre. A literatura foi fundamental para que a minha vida não ficasse circunscrita a uma casa, a um bairro, que ela atravessasse fronteiras e me levasse para lugares onde a minha humanidade fosse tocada. Digo: jovens, não desistam. A literatura pode entregar para vocês algo muito mágico, valioso e único.

O senhor é servidor licenciado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Como o serviço público moldou sua escrita?

Depois que me formei, prestei alguns concursos, inclusive para ser professor. E fui trabalhar no Incra. Não estava nos meus planos. Mas quando cheguei lá, minha vida foi transformada, porque me levou a trabalhar com pequenos agricultores, sem-terra, quilombolas e outras comunidades tradicionais. Me levou a conhecer esse Brasil que muitas vezes não está na literatura, na mídia. Se aparece nos jornais, é sempre com notícias trágicas. O trabalho me deu uma compreensão sobre a história do País, que tem marcas muito profundas no campo.

O que pode dizer sobre os próximos projetos?

Tenho alguns projetos, só está faltando um pouco de tempo para executá-los [risos]. Tempo é o recurso mais escasso. “Salvar o fogo” [livro lançado recentemente] é uma segunda parte de um ciclo que iniciei com “Torto arado”, então tem uma outra história que espero entregar para os leitores, sobre a relação de homens e mulheres com a terra. E tem outras histórias que me povoam.

Seus livros têm protagonistas negros e são representativos. Como vê o aumento dessa corrente na literatura nacional?

O Brasil é um país muito diverso do ponto de vista étnico e cultural. E a literatura, como expressão artística de sua população, deve representar essa diversidade. A verdade é essa: durante muito tempo, quem tinha acesso às editoras e aos eventos era uma parcela pequena da nossa população. Mas isso tem mudado nos últimos anos, e que bom. Temos vivido uma revolução, porque as pessoas têm tomado consciência disso, têm se empoderado dessa possibilidade. Isso se reflete na produção literária e artística. Vejo o Brasil mais representado. Há 20 anos eu procurava histórias que se aproximavam da minha vida, mas em lugares que não eram o Brasil. O acolhimento do público mostra que isso não é um desejo só meu, ou de alguns, mas de boa parte da população de se conhecer por meio das histórias.

O senhor é otimista? Analisa que é um caminho sem volta?

Espero que seja. Eu achava que a democracia era um caminho sem volta também [risos], mas a gente se viu ameaçado durante um tempo. Acho que a representatividade é um caminho sem volta, mas isso não quer dizer que a gente não precise estar vigilante. Devemos estar atentos e fazendo provocações para que isso permaneça.

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