Itamar Vieira Junior é um dos nomes mais celebrados da literatura brasileira contemporânea. Seu romance “Torto arado”, que narra a saga de duas irmãs que vivem em uma comunidade quilombola na Bahia, foi o vencedor do Prêmio Jabuti 2020 e do Prêmio Oceanos 2021. O livro também já figurou na lista de indicações de leitura do presidente Lula.
O escritor, que é geógrafo de formação e doutor em estudos étnicos e africanos, participou do Fliparacatu, evento literário que aconteceu na cidade de Paracatu, no noroeste de Minas Gerais, de quarta-feira (23) até este domingo (27), tendo como tema “Arte, Literatura e Ancestralidade” e reunindo diversos outros autores e autoras negros, como Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Jeferson Tenório, Taiasmin Ohnmacht e Calila das Mercês.
Foi nesse ambiente que Itamar Vieira Junior, autor de outro título de sucesso, o “Salvar o fogo”, recebeu a reportagem de O TEMPO para uma entrevista na qual defendeu que festivais literários são um potente instrumento para a formação de leitores. Destacando que esses eventos levam livros, autores e discussões importantes para diferentes territórios do País, ele argumenta que eles são especialmente importantes em cidades do interior, onde muitas vezes não há livrarias ou bibliotecas, sobretudo quando trazem para o centro do debate questões da contemporaneidade.
O escritor avaliou que as reverberações que suas publicações geram nas pessoas estão, em boa medida, relacionadas a um processo tardio de urbanização do país. “Sempre recebo retornos muito diversos dos leitores, mas todos caminham para o mesmo ponto: de que essa história é um pouquinho da história do Brasil”, avalia. E sobre suas próprias leituras, se disse transformado a cada título que percorre: “Brinco que nós somos como aquela história do rio de Heráclito: a gente nunca se banha no mesmo rio duas vezes. É isso, a vida é assim. Nós somos devires. E a gente sai diferente após entrar num livro para ler”, refletiu.
Na conversa, Itamar Vieira Junior ainda elogiou o acolhimento que recebeu na cidade de Paracatu, acrescentando ter ficado admirado com o conjunto arquitetônico e histórico da cidade e com o perfil e interesse das pessoas que participaram do evento. Para ele, essa circulação por diferentes cidades do País funciona como uma imersão para pensar e refletir sobre o Brasil e, também, como forma de se buscar inspiração para a escrita de novas histórias.
Leia a íntegra da entrevista com Itamar Vieira Junior
1. Qual é a importância dos festivais literários para a divulgação da literatura e para a formação de leitores?
Os festivais literários são eventos muito importantes para a promoção, divulgação e fomento da literatura e para a formação de leitores. Nessa experiência relativamente recente minha como autor, viajando e participando desses festivais literários, o que percebo é que eles estão levando livros, autores e discussões importantes para diferentes territórios. O Brasil é um país muito extenso, muito grande. Às vezes, a gente passa por cidades onde não tem uma livraria e aí a gente chega com tudo isso, movimentando não só aquela cidade, mas toda a região e isso é muito importante para o fomento, para a divulgação da literatura brasileira e para a formação de leitores.
2. E, para você, qual a importância de esses eventos se pautarem não só pela literatura, como também por temas da contemporaneidade?
Acho que tudo aquilo que é importante e relevante para o nosso tempo deve estar em pauta, deve ser debatido. E é o que temos feito não só aqui na Fliparacatu, mas em boa parte desses eventos, onde a gente fala de literatura, mas fala também sobre o Brasil. A gente fala sobre o nosso presente e também sobre o passado desse país. Quando a gente fala, por exemplo, de ancestralidade, é uma coisa que todo mundo sempre falou. Acho até engraçado isso. Porque se antigamente as pessoas evocavam seu passado a partir dos sobrenomes que tinham, da importância de suas famílias, hoje a gente tem uma visão múltipla sobre o que é isso (a ancestralidade), de forma que falar desse tema é falar das nossas origens, das nossas histórias, que são diversas, afinal, o Brasil não é um país apenas homogêneo. É um país bastante diverso, mas até pouco tempo atrás parecia que só o passado de alguns poucos é que interessava. Por isso, por ter sido um não assunto por tanto tempo, é fundamental que a gente fale sobre essas origens, como propõe este festival. Precisamos falar mais do nosso passado, falar da maneira como nós chegamos até aqui.
3. Como foi receber esse convite para estar aqui na Fliparacatu e como tem sido a sua experiência aqui?
Recebi o convite para estar aqui há algum tempo. A minha relação com os curadores, com as pessoas que têm promovido esse evento, já é antiga. E sempre recebo com muito carinho esses convites. Acho que Minas é um lugar muito especial desse Brasil. Tenho um grande carinho por esse estado e é sempre uma oportunidade de estar aqui, em uma cidade histórica, do interior do País, que me ajuda a entendê-lo. Cheguei ontem (quinta-feira, 24) e já pude andar um pouco pela cidade. Fiquei muito admirado com o conjunto arquitetônico e histórico e com o perfil e interesse das pessoas que estão aqui. Enfim, para mim, estar nesses lugares é sempre uma imersão para pensar e refletir sobre o Brasil. E acho que esse contato é também fonte de inspiração que me faz querer escrever novas histórias.
3. No evento, já no primeiro dia, quarta-feira (23), ouvimos o relato da promotora de Justiça Mariana Duarte Leão, que disse ter interrompido a leitura de “Torto arado” depois de se deparar com o atendimento a um caso de violação de direito semelhante ao de um dos personagens do livro. Esse tipo de história chega muito até você?
Os retornos chegam de diferentes maneiras. Chegam por meio de pessoas com mais informação, com mais letramento, que conseguem vislumbrar naquela leitura uma história que lhe atravessa de alguma maneira, como a questão quilombola, e chegam por meio de pessoas que não têm esse letramento, essa bagagem de conhecimento formal, e que também se sentem refletidos no que está narrado ali. E acho que isso acontece porque o Brasil foi um país que se urbanizou tardiamente. As pessoas ainda guardam uma memória que, às vezes, é a memória dos pais, dos avós, dos bisavós. E isso diz muito sobre quem somos, para onde estamos caminhando, sobre o que aconteceu com esse país. Sempre recebo retornos muito diversos dos leitores, mas todos caminham para o mesmo ponto: de que essa história é um pouquinho da história do Brasil.
4. Você é geógrafo e já teve outros ofícios antes de se dedicar ao trabalho como escritor. Como essas diferentes dimensões da sua identidade dialogam?
É muito curioso porque, na verdade, embora tenha me tornado escritor depois, a literatura surgiu para mim antes de quase tudo. Mas, em razão das circunstâncias, fui desenvolvendo outras habilidades, por necessidade. Fui estudar geografia para ser professor de geografia, ofício que exerci por uns dois anos, mas depois fui trabalhar com outras coisas. Mas, ainda assim, a literatura fazia parte do meu cotidiano e de tudo que eu experimentava e que eu vivia. Porque o meu interesse nunca se restringiu à geografia. Tanto que, depois, fui estudar antropologia, sociologia, ler filosofia… Então, quando me perguntam ‘quem é o Itamar geógrafo e quem é o Itamar escritor?’ Digo: não existem dois Itamares; eu sou um Itamar e o Itamar é atravessado por toda essa experiência humana dele, essa experiência de se interessar pelas ciências humanas, de se interessar pelas artes – e acho que tudo aquilo que escrevo também parte disso. Pode ser lido como literatura, mas para aqueles que desejam mais, pode ser lido como breves estudos sociológicos também. Acho até bom, porque isso mostra um pouco da minha formação e daquilo que me interessa também.
5. Como você escolhe as suas leituras?
Antes de tudo isso acontecer comigo [o sucesso literário], eu me interessava por aquilo que o livro trazia, pelas abordagens que o livro trazia, discutia. Eu descobria algum autor de literatura e gostava do que ele escrevia, eu me interessava por aquilo que ele escrevia. Se era um livro de ciências humanas, eu me interessava pela temática, por aquilo que ele abordava. Então eu fazia essas escolhas. Mas hoje sou muito demandado por trabalho. Então me dizem assim: ‘ah, preciso resenhar esse livro, você escreve?’. E, claro, não aceito tudo porque não tenho tempo, mas, aquilo que me interessa, continuo aceitando. Então vou sempre descobrindo leituras, vou descobrindo autores novos, vou descobrindo temas novos. E cada leitura que faço, me transformo. Brinco que nós somos como aquela história do rio de Heráclito: a gente nunca se banha no mesmo rio duas vezes. É isso, a vida é assim. Somos devires. E a gente sai diferente após entrar num livro para ler. Você não sai da mesma maneira [após uma leitura], assim como a gente não se banha no mesmo rio duas vezes. Com isso, quero dizer que a literatura nos dá a possibilidade de mudar, de aprender, de experimentar coisas novas.
6. E como você lê? Você tem um método, um horário, um lugar preferido?
Tento ler sempre que posso, mas o tempo hoje é escasso. Começo e vou até o fim. Claro que, se encontro um obstáculo no caminho, parto para outra, mas depois volto para aquele texto de novo porque tenho isso de não desistir da leitura, de sempre dar uma chance ao texto. Gosto de ler pela manhã, de ler no meio do dia, se eu tiver tempo. Mas o melhor horário, para mim, é o fim do dia. Esse é o momento em que tenho a sensação de que nós já resolvemos todos os problemas do dia e nada mais pode ser feito. Então, o tempo é nosso, o resto do dia é nosso. E aí a gente gasta do jeito que quiser. Portanto, o melhor horário é quando tenho a sensação que já resolvi todos os problemas e posso sentar para ler sem grandes preocupações. Ultimamente, como tenho viajado bastante, tenho gostado de ler em voo, em aeroporto. Porque não tem nada interessante para se fazer em aeroporto. E aí aproveito e avanço bastante nas minhas leituras. Às vezes passo horas esperando uma conexão, quando é para lugares mais distantes, então, tento aproveitar esse tempo ao máximo.
*O repórter viajou a convite da Kinross, patrocinadora do Fliparacatu por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura