Paracatu (MG) – O escritor Jeferson Tenório, laureado com o Prêmio Jabuti por “O avesso da pele”, afirmou nesta sexta-feira (25/8) que a literatura tem a missão de desnaturalizar o que se tornou banal, a exemplo da violência policial no Brasil. Tenório deu uma entrevista à coluna durante o Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu).
Nascido no Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre, o autor de 46 anos é doutor em Letras e foi professor visitante de literatura na Brown University, nos Estados Unidos. Tenório é mais um a obter sucesso editorial ao centrar as histórias em torno de protagonistas negros, realidade mais engajada e fiel ao País.
“O avesso da pele’ diz coisas que as pessoas negras já sabem, mas, talvez para o público branco, algumas coisas ali são novidades”, disse. E acrescentou: “A abordagem policial violenta é bastante banalizada porque é uma visão de Estado. É um dos papéis da literatura desnaturalizar aquilo que parece natural”.
O Fliparacatu vai até o próximo domingo (27/8), no Centro Histórico de Paracatu, com ingressos gratuitos e transmissão pelo YouTube. O evento é patrocinado pela Kinross por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura.
Leia os principais trechos da entrevista:
Em “O avesso da pele”, o narrador se refere a “você”, e aos poucos o leitor vai descobrindo essa pessoa. Como surgiu essa voz narrativa?
Quando comecei a pensar no “Avesso”, eu não queria um narrador comum, em primeira ou em terceira pessoa. De certo modo, eu queria torcer esse narrador. Foi quando eu comecei a experimentar a segunda pessoa, o “você”. Aí, percebi que o leitor poderia ficar cansado se essa voz narrativa continuasse por muitas páginas, porque o “você” o obriga a chamar o pronome a cada linha: “Você caminhou, você fez”… E no meio da história, coloquei um “eu”. Isso muda a perspectiva. Então, percebi que eu poderia ter um narrador em primeira pessoa que emula uma segunda pessoa e que pode estar na terceira pessoa, quando se distancia. Comecei a fazer esses arranjos. Penso que isso é fruto da minha pesquisa de mestrado e doutorado. Analisei muitos tipos de narrador e tive a intenção de quebrar a regra da teoria literária de que o narrador em primeira pessoa não pode ser onisciente.
Em que sua trajetória acadêmica ajuda e atrapalha como escritor?
Mais ajuda do que atrapalha. Dois editores haviam apontado um discurso teórico mais evidente na obra, em relação ao valor estético. E quando você faz ficção, a teoria tem de ficar submersa. De todo modo, a teoria me ajuda muito a escrever. Gosto de ler teoria literária, fiz o doutorado nessa área. Me dá argumento, bagagem e subsídio para que eu torne a narrativa mais complexa.
Apesar de ter nascido depois de “Estela sem Deus”, “O avesso da pele” foi seu cartão de visitas para o grande público. Você imaginava essa trajetória?
Eu achava que o “Avesso” seria publicado, as pessoas iriam falar dele por alguns meses, e que depois o tempo dele passaria, como é o ciclo da maioria dos livros. E o que aconteceu me surpreendeu bastante, já antes da publicação, quando a obra teve os direitos autorais vendidos para alguns países e para o cinema, depois veio o Prêmio Jabuti… E hoje está traduzido para pelo menos 15 línguas. O “Avesso” diz coisas que as pessoas negras já sabem, mas, para o grande público, talvez o público branco, algumas coisas ali são novidades: a sofisticação do racismo nas relações afetivas e parentais. Nesse sentido, o “Avesso” acaba tendo essa sobrevida. Estamos há três anos da publicação e o livro ainda continua tendo uma constância nas vendas e na crítica. Teve uma bela adaptação para o teatro e também irá para o cinema. O diretor será o Silvio Guindane, que recentemente foi premiado no Festival de Gramado pelo filme do Mussum. Estou muito feliz com essas novas versões.
A violência policial também é tratada no livro. Como encontrou uma maneira de iluminar algo tão naturalizado no país?
É um dos papéis da literatura desnaturalizar aquilo que parece natural. Nesse sentido, a abordagem policial violenta é bastante banalizada. Isso porque é uma visão de Estado. O Estado escolhe corpos matáveis. Que corpos ele pode aniquilar? Corpos negros, periféricos. E isso é histórico, uma herança da escravidão, do próprio modo como o Estado lidou com os efeitos da escravidão. Quando a Guarda Imperial sai de dentro do Império, do círculo aristocrático e vai para a rua cuidar de segurança, quem é abordado e preso? São os “vagabundos, que não estão fazendo nada”. São as pessoas negras que recentemente haviam sido simplesmente jogadas na sociedade, sem nenhum benefício, sem nada. A escravidão termina e o que se faz com essas pessoas? Prende. Enquanto a gente não tiver uma mudança da visão do Estado, essas violências ainda não continuar.
Como despertou para a leitura? E o que diria a quem diz não gostar de livros?
Meu despertar como leitor não foi um bom exemplo, não. Fui um leitor tardio, comecei a ler com 23, 24 anos. Foi quando li um livro inteiro de literatura. E quando entendi o que significava a literatura, foi uma sensação de perda de tempo, de tentar resgatar todo o tempo que eu havia perdido por não ter lido. Comecei a comprar livros, a conviver com os livros, me endividei comprando livros. Foi uma sensação também de raiva muito grande da sociedade. Eu pensava: “Por que não me disseram que ler era tão bom, que mudaria minha vida?”. A leitura muda sua percepção do mundo, e às vezes materialmente, como a Carolina Maria de Jesus. Ela tinha essa noção de que a literatura a salvaria da pobreza, como a salvou por algum tempo. Então, eu diria: leia o quanto antes, para não perder tempo.
Quais são seus próximos projetos?
Estou terminando um romance. Os narradores são jovens, como nos meus livros anteriores, mas a história vai se passar num ambiente acadêmico. Vou tentar, de maneira ficcional, entrar em alguns debates importantes sobre a literatura. Acho que talvez esteja faltando falar sobre a trajetória de intelectuais negros na literatura.