“A Amazônia é a síntese dos erros que o Brasil comete desde o início da colonização, como a destruição de biomas nativos, caso da Mata Atlântica, e o extermínio dos povos indígenas”. A análise é da jornalista e escritora Miriam Leitão, que participa Fliparacatu, um festival literário internacional que acontece na cidade de Paracatu, no noroeste de Minas Gerais, onde fez o pré-lançamento de seu mais recente livro, “Amazônia na encruzilhada” (Ed. Intínseca), que aborda simultaneamente questões ambientais, climáticas, econômicas e sociais.
Em uma entrevista a O TEMPO, a autora contou que teve a ideia de escrever o livro no começo da pandemia, quando estava reclusa no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro. O que parecia uma loucura, no entanto, acabou funcionando como uma forma de aproveitar o tempo disponível para entrevistar pessoas de vários lugares do mundo, usando a sua experiência no jornalismo como ferramenta para entender a realidade da Amazônia e coletar informações. Ela também se baseou em suas reportagens anteriores sobre a região, realizadas desde 2008. O uso desse material de acervo se faz presente, inclusive, na capa da publicação, ilustrada por uma foto que Sebastião Salgado fez de Miriam Leitão durante uma reportagem feita, em 2013, na maior floresta tropical do planeta.
Na conversa com a reportagem, a escritora destacou que, embora não deixe de fazer alertas, o livro, escrito durante um período de escalada da destruição do meio ambiente no país, mantém um olhar otimista, atento às soluções. Não por outro motivo, ela lembra de política públicas de combate ao desmatamento que foram bem sucedidas, como aquelas implementadas no país por lideranças como Marina Silva e Carlos Minc, ministros do Meio Ambiente entre 2003 e 2010, no primeiro e segundo mandato presidencial de Luís Inácio Lula da Silva. “Eu quis mostrar como essa política funcionou para mostrar como ela pode funcionar de novo”, diz. “Por isso que o livro é do tempo das possibilidades”, resume.
Essa verve otimista, confidenciou a autora, tem a ver também com o conselho de uma amiga para que abordasse não só da destruição, mas também alternativas. Lembrando que está há 20 anos atuando como jornalista de economia que se mantém atenta às questões climáticas e ambientais, ela diz esperar uma conciliação entre ecologia e economia – algo fundamental para a sobrevivência dos seres humanos na Terra.
Homenagem. Na Fliparacatu, Miriam Leitão também foi homenageada pelo seu trabalho com a literatura infantil, que ela considera uma parte importante da sua identidade. No evento, ela conversou com as crianças sobre os seus sete livros voltados para este público, entre os quais o mais recente, “O menino que conhecia o fim da noite”. Na entrevista a O TEMPO, a autora reconheceu ter ficado emocionada com a homenagem.
Leia a íntegra da entrevista com a jornalista e escritora Miriam Leitão:
1. Quando surgiu a ideia de escrever o livro “Amazônia na encruzilhada”? E como essa ideia foi amadurecendo?
Sabe, um livro começa a ser escrito antes que o autor saiba que ele começou a ser escrito. Eu, na verdade, tive a consciência de que eu queria escrever e falei com o editor no começo da pandemia. Eu estava presa na Gávea, com o isolamento social, e o Brasil inteiro e o mundo inteiro estavam presos. E parecia uma loucura. Você querer escrever sobre a Amazônia trancada na Gávea. Mas isso foi uma excelente oportunidade. Porque muita gente estava com tempo disponível. E eu pude entrevistar muita gente em vários lugares do mundo e do Brasil. Com isso, andou muito mais rápido o trabalho das entrevistas. Mas ao escrever eu me dei conta de que eu estava escrevendo há muito mais tempo. Tanto que a foto da contracapa é de uma reportagem que fiz em 2013 com o Sebastião Salgado, e ele me fotografou. O que é um privilégio enorme, porque ele nem fotografa pessoas assim, né? Mas aí ele me viu atravessando um lugar difícil da floresta e fez uma foto minha. E eu coloquei essa foto no livro. Além desta reportagem, eu me refiro a algumas outras, feitas desde 2008, em que também precisei ir à Amazônia, trazendo para este projeto alguns fatos marcantes dessas viagens.
2. Como é abordado, no livro, essa interseção entre ecologia e economia, que é justamente a sua área de atuação como jornalista?
Quando comecei a falar de questão ambiental e climática, a maioria dos economistas ainda não havia entendido que há uma interseção entre os dois temas. Hoje, felizmente, temos mais economistas falando sobre isso. Enfim, eu sou jornalista de economia, esse é o meu campo. E há muito tempo estou lá no ponto de encontro esperando a conciliação entre meio ambiente e economia, entre ecologia e economia, porque sei que se não houver essa conciliação não teremos futuro. Ou seja, essa interseção é fundamental, e por isso o que tento fazer é que mais economistas entendam isso e que mais ambientalistas também entendam toda a lógica econômica. Ainda que eu viva dizendo que não é o meio ambiente que tem que ceder, quem tem que ceder é a economia, é preciso entender como a economia funciona para trabalhar melhor, de forma mais eficiente, a proteção do meio ambiente brasileiro, buscando essa conciliação de interesses.
3. No período em que escreveu o livro “Amazônia na encruzilhada”, o Brasil vinha de uma escalada da destruição ambiental. No entanto, a obra ainda mantém um olhar otimista, de que é possível mudar essa realidade. Foi uma decisão deliberada? Como foi esse processo?
A destruição do meio ambiente e da Floresta Amazônica no governo Bolsonaro foi assustadora. O fortalecimento do crime na Amazônia foi deliberado. O Estado, que deveria entrar em áreas de conflito para ser o árbitro, foi todo utilizado para atacar o meio ambiente, atacar a floresta. Mas muita gente resistiu dentro da máquina. Muita gente, dentro do Ibama, do ICMBio, do Incra, da Funai e de vários outros órgãos, se organizaram clandestinamente para fazer um movimento de proteção. Essas histórias de resistência também estão no livro. Enfim, esse aprofundamento do projeto de destruição, que eu já tinha visto na minha juventude, no governo militar, me levou mais ainda para dentro do livro. Isso talvez tenha sido o fator detonador. Eu disse: ‘agora eu tenho que escrever’. Então escrevi na maior parte do tempo frente a esse que era o pior dos cenários. Mas eu sabia que aquele ponto não era o fim do caminho, era apenas a parte mais difícil da estrada. Então, olhei para trás e constatei: ‘a gente já passou por muita coisa e a gente superou’.
E o passado está aí também para mostrar os avanços que o Brasil teve durante o governo Lula, quando ele colocou em andamento uma política muito bem sucedida de combate ao desmatamento com a liderança da Marina Silva e depois do Carlos Minc. Uma política com eficiência, com competência, com uma visão integrada de tudo. E eu quis mostrar como isso funcionou, para mostrar como pode funcionar de novo. É isso que me traz a esperança. Por isso que o livro é do tempo das possibilidades. Além disso, eu estava entrevistando uma pessoa que eu respeito muito, uma amiga querida, e ela me disse: ‘Miriam, fale da destruição, mas fale também das possibilidades’.
4. Você sente que, frente a todos esses eventos climáticos extremos, as pessoas estão realmente se dando conta do tamanho do problema e da necessidade de mudanças?
Acho que muita gente está entendendo, muito mais gente está entrando nessa conversa. E também tem muita gente oportunista, como sempre existiu no Brasil. Tem gente que está nisso só ‘para inglês ver’. E a gente tem que ter consciência disso, reforçando sempre que a Amazônia está no centro do nosso debate brasileiro. A Amazônia é a síntese dos erros que o Brasil comete desde o início da colonização, como a destruição de biomas nativos, caso da Mata Atlântica, e o extermínio dos povos indígenas.
5. Esse pré-lançamento acontecer em Paracatu é também simbólico. Por aqui, a luta é pela preservação de outro bioma brasileiro que vem sofrendo muito, o Cerrado, cuja preservação é também importante para a preservação da Amazônia, certo?
Sim, é muito simbólico. O Cerrado é um bioma fundamental para a manutenção da biodiversidade e dos recursos hídricos do Brasil. Como o Eduardo Góes Neves, com quem dividi uma mesa de bate-papo ontem (sexta-feira, 25), falou: os rios da Amazônia nascem no Cerrado e o Cerrado precisa dos rios voadores que vêm da Amazônia. Isso é um ecossistema. Então, é claro, o Cerrado também precisa ser protegido, até porque não existe nenhum bioma brasileiro que seja desimportante.
6. E como foi o pré-lançamento no Fliparacatu?
O pré-lançamento foi uma correria, porque o livro, na verdade, era para ser lançado na Bienal do Rio. Tivemos que antecipar a impressão. Então foi um esforço coletivo para que a primeira tiragem chegasse, o que exigiu uma união de forças que incluiu o Afonso Borges (um dos organizadores e curadores do festival), o pessoal da livraria (que foi montada no evento) e da editora. Eles fizeram uma operação relâmpago para trazer o livro. E fiquei muito feliz de ter lançado aqui em Minas Gerais, que é a minha terra. Foi uma surpresa que me fizeram e eu fiquei muito contente. O próximo lançamento será dia 31 de agosto no Rio de Janeiro, depois na Bienal (também no Rio), no dia 7 de setembro. Depois teremos em Brasília, no dia 12. Posteriormente, vou marcar mais datas e locais para sair por aí contando para as pessoas o que eu, que sou uma jornalista de economia e não uma especialista em Amazônia, fui reunindo de informação de todas as minhas viagens e de todas as entrevistas que fiz com as mais variadas pessoas.
7. Para finalizar, queria abordar outro tema: o seu trabalho com a literatura infantil, pela qual foi homenageada. Como foi receber essa honraria?
Fiquei muito emocionada, porque eu queria uma coisa simples: conversar com as crianças. Mas isso dependia de elas quererem conversar comigo. O que foi interessante é que elas queriam e me fizeram muitas perguntas, e perguntas muito boas. E essa homenagem me emociona porque sou isso: fui uma criança muito ligada a livro, eu amava os livros e amo os livros até hoje, mas eu era uma criança cujo principal brinquedo era o livro e a principal brincadeira era ler. Curiosamente ninguém me vê como escritora de literatura infantil. E gosto que me vejam assim, porque esta também sou eu. Daí que ser homenageada por esse trabalho foi algo que muito me emocionou.
*O repórter viajou a convite da Kinross, patrocinadora do Fliparacatu por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura.