José-Manuel Diogo em palestra com Jamil Chade e Tom Farias (Foto: Ranch Films)

Dispor de recursos relevantes para atividades culturais é medida política fundamental para induzir desenvolvimento

Há coisas que no Brasil funcionam muito bem. Os festivais literários são um exemplo. Eles conseguem, “literalmente”, levar a democracia para junto do povo. Na verdade, eles são formas vivas de democracia.

Imagine Paracatu! Uma pequena cidade no estado de Minas Gerais, há décadas devotada ao garimpo de ouro e onde a paisagem urbana deixa adivinhar um passado ao estilo casa grande e senzala.

É um lugar simples. No centro da cidade, a igreja de Nossa Senhora do Rosário, o centro paroquial e uma correnteza de restaurantes definem o contorno de uma praça larga e quase plana.

É fácil para a imaginação recuar uma década (e um século) e projetar um lugar remoto feito de defeitos de cor e desigualdade.

Talvez seja preciso recuar apenas um ano.

A praça se alvoroça com a chegada dos portugueses escritores. Algumas vozes se levantam em protesto. “Uma igreja não é lugar de literatura.” Mas, na verdade, nenhuma prosa atrapalhou missa ou “Pai Nosso”.

Nem o slam de Luiza Romão, a memória única de Marco Haurélio, a sageza lúcida de Mia Couto, a candura feérica de Itamar Vieira Junior ou a alma grande da Conceição Evaristo. Lá, na antiga praça colonial, agora povoada de escritoras e escritores, vestida de palavras e liberdade, cabiam todos os sonhos do mundo.

Foi assim que, nessa cidade que já foi do príncipe, de águas mansas (Para = rio, Katu = bom, em tupi guarani), rasto de bandeirantes e, ainda hoje, morada de quilombos, que a democracia chegou aos bancos da igreja e do centro paroquial e a toda a praça histórica, transformada em biblioteca. Lindo de ver!

A cultura e, neste caso especial, a literatura são exemplos a seguir. Mostram um Brasil que funciona. Inteligente, inclusivo e capaz de pensar e discutir temas fraturantes, unindo todos.

Mas a razão pela qual esses festivais literários proliferam pelo Brasil — bem como muitas outras manifestações culturais próximas às populações — é também a virtude de uma singularidade: a existência de mecanismos de financiamento estáveis. Portugal, um país não regionalizado e de cariz municipalista, que não conta com essas leis de incentivo próximas à economia real, não consegue criar um ecossistema criativo que permita o desenvolvimento de uma economia ligada às indústrias culturais.

Dispor de recursos relevantes para manifestações culturais, originados em impostos recorrentes e não apenas no lucro das empresas, é uma medida política fundamental para induzir desenvolvimento.

É verdade que, nos últimos quatro anos, o Brasil experimentou, devido às políticas públicas que vigoraram no governo anterior, um retrocesso civilizacional; mas também é verdade que o regresso dessas mesmas políticas são a prova de que o Brasil pode dar ao mundo modelos de gestão modernos e capazes de transformar a sociedade.

Cereja no topo do bolo seria o agronegócio aprender com a cultura, e aí veríamos o sertanejo virar literatura. Não consigo pensar em nada mais democrático.

Leia o texto original aqui.