Paracatu (MG) – A escritora Eliana Alves Cruz, vencedora do Prêmio Jabuti e que recentemente lançou o romance “Solitária”, disse nesta sexta-feira (25/8) esperar que no futuro as pessoas se perguntem como puderam existir histórias como as do seu livro. Em entrevista à coluna no Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu), Cruz contou as reações à obra sobre mãe e filha que moram num quarto de empregada doméstica.
Carioca, Cruz tem 57 anos e no ano passado levou o Jabuti pelo livro de contos “A vestida”. Agora, em “Solitária”, a autora narrou as minúcias da vida dos trabalhadores domésticos, que se refletem em um Brasil marcado pela escravidão e palco de episódios trágicos na pandemia.
“Espero que no futuro as pessoas leiam o livro e se perguntem: ‘Como foi possível?’. É cruel a gente ler e perceber que isso acontece no nosso apartamento ou no apartamento ao lado. Faz pouco tempo que as empregadas domésticas puderam ter o auxílio-desemprego igual a todos os trabalhadores”, disse a escritora.
O Fliparacatu vai até este domingo (27/8), no Centro Histórico de Paracatu, com ingressos gratuitos e transmissão pelo YouTube. O evento é patrocinado pela Kinross por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura.
Leia os principais trechos da entrevista:
Recentemente você lançou o romance “Solitária”, que aborda o trabalho doméstico e tem repercutido muito. Como recebe essa resposta?
Não imaginei que esse tema do trabalho doméstico ainda suscitasse tanto debate e motivasse tanta emoção. Várias pessoas me falaram: “Essa também é a minha história, mas não conto para ninguém. Não por vergonha, mas não quero ser eternamente a empregada doméstica que virou doutora. Não quero ser aprisionada nisso”. Percebi um movimento também de pessoas que se identificam com os patrões. Assumir isso é de uma coragem muito grande. Acho que falta isso ao Brasil. Eu precisava dar uma visão do período atual, da pandemia. Vi pessoas muito próximas se isolando em suas fazendas cercadas de empregados, uma coisa muito colonial. As primeiras vítimas da Covid no Brasil foram empregadas domésticas e porteiros. A literatura tem o poder de congelar o momento, tirar esse retrato. Espero que no futuro as pessoas leiam o livro e se perguntem: “Como foi possível?”. É cruel a gente ler e perceber que isso acontece no nosso apartamento ou no apartamento ao lado.
E a PEC das Domésticas, que garantiu direitos trabalhistas a esses trabalhadores, só tem dez anos.
É tudo muito recente. Faz pouco tempo que as empregadas domésticas puderam ter o auxílio-desemprego igual a todos os trabalhadores no Brasil. Era menor até então. Uau, o que é isso que a gente vive? O trabalho doméstico é digno como outro qualquer. Oficialmente temos 5 milhões de empregadas domésticas. Contando a família que elas sustentam, são 20 milhões de pessoas vivendo desse trabalho. Tem uma série de doenças que são do trabalho doméstico, como tendinite, reumatismo, alergia… E a empregada não toma os mesmos cuidados que adotaria em uma empresa: não usa máscara, luva, bota. Fiz de “Solitária” um livro curto de propósito. Pensei nas pessoas que não têm o hábito da leitura. Uma trabalhadora do lar, pela sua trajetória de vida tão pesada, não tem tempo de adquirir esse hábito. E eu queria que ela lesse.
Como descobriu o universo da leitura?
Meu pai é advogado e minha mãe era professora. Ele gostava muito de ler e sempre me incentivou. Só que na infância e adolescência fui diagnosticada com dislexia e não conseguia ler. Me cansava muito. Minha mãe observou aquilo, me levou para um tratamento e eu consegui. A partir dali, descobri quão incrível era a leitura. Ter o exemplo dentro de casa é fundamental. Às vezes a gente reclama que os filhos não leem, mas a gente não lê, nem perto deles. É como o chuchu, né? Você nunca oferece chuchu. Fica gostoso com camarão, manteiguinha, um suflê, bota um cheiro verde, um queijo ralado, fica uma delícia [risos].
O que diz a quem diz não gostar de livros?
Insiste. Você vai achar algo que te encante. Porque ali dentro tem a humanidade inteira. Você precisa ler no seu ritmo. As pessoas têm uma vida pesada de trabalho e estudo, de outras diversões. Então, leia uma página por dia, um parágrafo por dia, mas leia. Como tudo na vida, é um exercício. E é muito importante. Os livros são um direito humano. É muito triste abrir mão.