Mia Couto em sessão de autógrafos no Fliparacatu (Foto: Ranch Films)

“Os africanos querem a comunhão com o Brasil e é preciso que o Brasil corresponda a esse abraço.” Quem faz o apelo é Mia Couto, escritor moçambicano e um dos autores contemporâneos mais importantes da língua portuguesa.

Em entrevista exclusiva ao UOL, ele constata a importância da retomada da agenda da diplomacia brasileira na África. Mas pede para que a nova fase seja marcada por uma maior sensibilidade em relação às expectativas da população local e projetos concretos.

“Na economia, o que vimos em Moçambique foi com base em recursos minerais e o início de uma tentativa de exploração do agronegócio, como a soja. Não correu muito bem. É preciso olhar com mais respeito para aquilo que são as sensibilidades locais, as questões sociais e ambientais.” – Mia Couto

Ele também sugere que a aproximação não fique apenas no afeto ou nas intenções. “Precisamos construir algo mais concreto”, afirmou.

Frequentemente cotado entre os favoritos para levar o Prêmio Nobel de Literatura, o moçambicano diz que considera o Brasil como uma espécie de segunda pátria. Entre suas obras estão livros como “O último voo do flamingo” e “Terra sonâmbula“, escolhido como uma das melhores obras africanas do século 20.

Neste fim de semana, enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fazia sua viagem por três países africanos, Mia Couto foi um dos autores homenageados no Festival Literário Internacional de Paracatu (MG).

Leia os principais trechos da entrevista:

O que representou a ausência do Brasil do continente africano como prioridade política nos últimos anos?

A África nunca teve uma posição muito próxima ao Brasil, com exceção aos anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, quando ele começou com projetos concretos. Evidentemente, isso ficou suspenso durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) e agora é uma grande alegria pensar que isso está sendo retomado.

Os africanos querem a comunhão com o Brasil e é preciso que o Brasil corresponda a esse abraço. Deste lado [africano], já está preparado a ser dado. Obviamente, isso não pode ser feito apenas de intenções ou dos afetos e da história. Precisa construir isso com algo mais concreto. Existiam projetos que estavam em andamento e que podem, agora, ser retomados para dar firmeza a esta irmandade.

Enquanto há uma ala no Brasil que ignora a África, vemos americanos, chineses, japoneses, europeus, russos e indianos disputando espaço no continente. Por qual motivo a África é tão cobiçada por potências?

Por vários motivos. Um deles são os recursos naturais, que estão no subsolo. Eles continuam a ser explorados como se continuasse a estar em vigor uma espécie de contrato colonial. A África continua a exportar dessa forma e, neste aspecto, a relação colonial manteve-se, mesmo depois das independências.

Por outro lado, a África tem um grande potencial, que é sua juventude. Em Moçambique, 60% da população têm menos de 15 anos. É por isso que nos salvamos da pandemia da covid-19. Não é a única explicação. Mas é um aspecto importante. Há ainda um aspecto geopolítico que, como na Guerra Fria, também existe.

Nesta retomada do interesse da diplomacia brasileira pela África, quais erros do passado devem ser evitados?

Na economia, o que vimos em Moçambique foi com base em recursos minerais e o início de uma tentativa de exploração do agronegócio, como a soja. Não correu muito bem. É preciso olhar com mais respeito para aquilo que são as sensibilidades locais, as questões sociais e ambientais. De que maneira as pessoas vão tirar proveito daquilo que estava sendo feito. Às vezes, para os brasileiros, a África é um continente que eles acham que já conhecem. Isso é um erro do mundo inteiro.

Vou dar um exemplo. Certa vez, uma empresa fez uma pesquisa e perguntava para a população local qual era sua comunidade quilombola e seu grupo indígenas. Pelo amor de Deus! Em Moçambique, todos os povos são indígenas e ninguém sabia o que era quilombo.

A empresa contratou alguém para fazer estudos sociais, com receitas feitas. Esse arrogância precisa ser repensada. Precisa envolver as pessoas. A guerra no norte de Moçambique evidenciou que é preciso considerar que as pessoas precisam ter um sentimento de que elas têm algo a ganhar. Não se entregam simplesmente territórios ou se fazem concessões de coisas que vão dar rendimento em 40 anos. Num país jovem, é preciso responder de imediato.

Nesse retorno ao Brasil, sentiu uma mudança no clima político do país, depois dos anos de Bolsonaro?

Mudou muito, sim. Há um outro Brasil agora. Era o que se esperava. Agora, pensa-se sempre que vamos começar de novo, de uma forma idílica e que vamos fazer um novo Brasil. Mas o novo Brasil se faz sobre o velho. Ele é feito sobre aquilo que foi deixado como herança, como ruína.

Qualquer governo, por mais de esquerda que fosse, tinha de fazer concessões, negociar saídas, fazer compromissos. Vejo uma frustração também em algumas pessoas que tinham uma certa utopia de que esperavam começar um Brasil completamente do zero. Mas isso é um sinal de que não está sendo entendido.

Em 1974, Portugal reconheceu a independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Em 2024, portanto, os eventos que marcam os 50 anos desse fato começam a ser realizados. Esse capítulo está superado ou a descolonização é ainda um processo?

É um processo. E  é preciso que construamos uma nova relação. Estamos fingindo que isso não existe. Essas memórias do passado sofridas, precisamos tratar juntos deles, falar delas. Uma proposta que eu considero interessante seria construir um museu da escravatura em Portugal, no Brasil ou num terceiro país. Mas organizado em conjunto. Precisamos fazer juntos a cura desse passado. É a única maneira de superarmos isso.

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